domingo, 29 de junho de 2008

Sophia Andresen II

O JARDIM E A NOITE

Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.

Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

sexta-feira, 27 de junho de 2008



Poema XIV

de Roberto Piva
dedicado ao Carlinhos

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas imberbes & brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor."

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Poesia

Bom, tudo pode ser melhorado (admito, Da Vinci, Billie Holiday, El Greco e 2046 me desmentem!), mas voltei a escrever. Estava travado há tempos.

Inversões

(para o Alberto)

Espelhos
que vêem o passado,
que vêm do passado.
Procuram mais do que mostram
e ofuscam, brilham, cegam...

Espelhos,
que refletem outros, outras, coisas.
A galinha degolada de Quiroga,
a vítima inocente sem altar decente.
E a culpa...

A morte da alma por acidente
e o espanto pelo paraíso.

(Rio, 04/2006, revisto em 06/2008)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Jorge de Lima e o Brasil

Com a visão de oráculo dos poetas, JL nos avisou de onde viriam os problemas:

"Também há as naus que não chegam/mesmo sem terem naufragado;/não porque nunca tivessem/quem as guiasse no mar/ou não tivessem velame/ ou leme ou âncora ou vento/ ou porque se embebedassem/ ou rotas se despregassem/mas simplesmente porque/já estavam podres no tronco/da árvore que as tiraram".

É isto, de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo! Àqueles que entregaram suas esperanças a esses que ora nos governam: Começar de novo!

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Manuel Bandeira

"Ama-me por amor do amor,
e assim hás de me amar por toda eternidade".

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Roberto Piva




Poema Porrada

Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
____cristãos fábricas palácios
____juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
____duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
____de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
____esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perfuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
____perder o olhar nos telhados como
____se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos
____de Modigliani
eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani
minha alma louca aponta para aLua
vi os professores e seus cálculos discretos ocupando
____o mundo do espírito
vi criancinhas vomitando nos radiadores
vi canetas dementes hortas tampas de privada
abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem Fôlego

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sophia Andresen


PORQUE

Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 8 de junho de 2008

E.E.CUMMINGS II

Para quem prefere, segue o original:

[somewhere i have never travelled]


somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously) her first rose

or if your wish be to close me,i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain, has such small hands

e.e.cummings


Primeiros contatos através das transcriações de Augusto de Campos, e aquelas minúsculas sempre foram uma atração para mim. Mucho macho! E e.e.cummings é autor de alguns dos mais belos poemas de amor da língua inglesa (a avaliação não é minha, mas concordo com ela). Há um filme em que a Cameron Dias lê um poema dele para a Tony Colette e é a única coisa boa do filme. O poema é I carry with my heart e é lindo, tão lindo quanto o que segue abaixo.

nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas


(tradução: Augusto de Campos)

sábado, 7 de junho de 2008

Henry Murger

A Balada do Desesperado

— Quem bate à porta a tais horas?
— Abre, sou eu. Quem tu és?
Não se entra na minha casa
Tão tarde assim, bem o vês.

— Abre. — Teu nome? — Há geada,
Abre. Teu nome? — És tardio!
Qual é teu nome? — Ai, na cova
Um morto não tem mais frio.

Eu caminhei todo o dia
Do sul ao setentrião,
Ao pé da tua lareira
Quero sentar-me — Inda não!

Diz teu nome... — Eu sou a glória
E aspiro à posteridade...
— Passa fantasma irrisório...
— Ó dá-me hospitalidade!

Eu sou o amor e a esperança
As duas porções de Deus...
— Segue a estrada... A minha amante
Há muito me disse adeus!

— Eu sou a arte e a poesia,
Proscreveram-me... Abre! — Não!
Já não canto minha amante.
Nem sei que nome lhe dão!...

— Abre, que eu sou a riqueza,
E trago do ouro o fulgor,
— Posso dar-te a tua amante...
— Podes dar-me o seu amor?

— Sou o poder, tenho a púrpura.
Abre a porta! — Anelo vão!
Podes trazer-me a existência
Daqueles que já não sâo?!

— Se tu não abres teus lares
Senão a quem diz seu nome
Sou a morte! trago alívio
P'ra cada dor que consome!

Podes ver, trago na cinta
Ruidosas chaves fatais...
Abrigarei teu sepulcro
Do insulto dos animais.

— Entra, estrangeira funérea...
Perdoa à mendicidade,
Porque é no lar da miséria
Que tens hospitalidade.

Entra; cansei-me da vida
Que nada tem que me dar...
Há muito eu tinha desejos
(Não força) de me matar!

Entra no lar, bebe e come,
Dorme, e quando despertares,
Para pagar tua conta
Hás de levar-me aos teus lares.

Eu te esperava, eu te sigo...
Vamos... arrasta-me... assim...
Mas deixa o meu cão na terra
P'ra eu ter quem chore por mim!


Tradução de Castro Alves.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Charles Baudelaire II




Uma carniça
Tradução de Ivan Junqueira.

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

- Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Charles Baudelaire

A Uma Passante

tradução Guilherme de Almeida

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Cecília Meireles




Despedida


Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.

[Cecília Meireles]

terça-feira, 3 de junho de 2008

Florbela II

Ensaio sobre o Poema Eu, de autoria de Maya Ogwaru, publicado no sítio prahoje.com

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca - Livro de Mágoas

Este soneto não é o primeiro do seu livro ‘Livro de Mágoas’ embora seja uma excelente autobiografia. Nela está contida a dor, a incompreensão que Florbela sofria e não percebia.

Florbela apresenta-se como uma mulher desnorteada, sem rumo na vida, desejando a evasão e sendo ligada com a irrealidade. “Crucificada” e “dolorida” são os adjectivos escolhidos para se caracterizar psicologicamente. Crucificada por não ser compreendida pelos maridos e não só; “dolorida” pela tristeza que trazia dentro de si.

A negridão débil e desfeita que o destino mais forte (triste e amargo) irá conduzi-la á morte. Note aqui um sentimento de predestinação e o sentimento que a culpa da sua morte é do destino. Termina a quadra com uma caracterização sua global “Alma de luto” (morte / sombra) “sempre incompreendida” (Florbela compreendia muito bem que nem toda a gente a aceitava e a entendia e foi esse factor que a fez desenvolver os seus poemas)

No primeiro terceto destaca a falta de atenção, a descriminação, o estereótipo que sofria por toda a gente pensar que estava sempre triste, acabando por confessar não saber o porquê de muitas vezes chorar. Florbela muitas vezes nos seus poemas confessa que não se sabe definir porque ainda não se encontrou, provavelmente a sua tristeza sistemática muitas vezes tinha um significado que ela própria nem sabia.

A predestinação do amor, do príncipe que era suposto vê-la e que nunca a encontrou. Talvez o melhor verso ou terceto que resuma a vida amorosa de Florbela Espanca. Uma vida cheia de amores, sem que nenhum fosse o certo.

Estudo sobre o poema feito por Maya Ogwaru

Florbela Espanca




Um ícone, muuuitos sonetos, muitos poemas. Há uma edição portuguesa, em dois volumes, de seus poemas, que é uma beleza. Muitas informações aqui.

Desalento

Às vezes oiço rir, é ’ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n’outra vida!

Ei não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
Que só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!


e também

Sonhos


Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…

Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…

Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!…
…É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!