terça-feira, 31 de julho de 2012

O que acontece....

Ver, encontrar razões para tudo que nos acontece, os atropelamentos da vida do cidadão comum, é uma forma que encontramos de tornar suportável a constatação da impotência do ser humano diante dos fatos mais comezinhos da vida.

Encarar que a vida segue seu fluxo independentemente das nossas razões, encarar o fato de que "estar preparado para tudo" na verdade implica na aceitação da inexorabilidade do fluxo vital, esta seria a verdadeira sabedoria da vida.

Duas notícias chocantes pela sua inexorabilidade, pelo inevitável de seu desenrolar fazem-me pensar que o valor real de tudo está nos nossos  olhos, na nossa capacidade de aceitação e na nossa capacidade de revolta.

Fazer-se forte não é uma opção verdadeira, o sofrimento deve ser encarado como o que é: sofrimento, causa dor, revolta, impotência. Devemos nos permitir sofrer sem culpa, as lágrimas devem poder correr sem vergonha e sem pudor. Colocar-se em uma armadura de super-herói, cercar-se de proteção, apenas potencializa o sofrimento que se afigura inevitável...A passagem lenta e gradual pelos estágios da dor pode garantir que não sejamos lançados nas trevas da depressão doentia, do inconformismo sem sentido que podemos presenciar no dia-a-dia e na construção dos heróis tão caros à midia nacional.

Meister Eckhardt, em um de seus sermões disse: "Tenho dito frequentemente que uma pessoa que quer começar uma vida boa deve ser como uma pessoa que desenha um círculo. É preciso colocar o centro em seu lugar correto e conservá-lo e o círculo será perfeito. Em outras palavras: deixe o homem acertar seu coração em Deus (aqui entendido como uma extensão do próprio homem, distante da religião formatada)  e então seus feitos terão virtude: mas se o coração do homem é incerto, as grandes coisas que fizer serão de pouco efeito."

Quantos de nós poderão dizer isto ao olhar para o que foi construído? Que o sofrimento de hoje possa nos fazer gratos pelas alegrias do passado, pelo palácio de amor que, aos poucos, fomos construindo, mesmo com tempestades, terremotos, afastamentos. O verdadeiro sábio usa o dia de pouco para ser grato pelos dias de muito.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Eu e o futuro...



No seu seminal livro, Nature, Man and Woman, Alan Watts, já na introdução, embevece-se com a imagem de um riacho de águas cristalinas, onde nadam carpas coloridas. Supõe, com acerto, que somos capazes de ficar olhando por horas tal quadro, capaz de nos retirar de nossa urgência diária, um quadro de, talvez, venha ocorrendo por milhares de anos. O embevecimento traz consigo a dor de perceber que este quadro de paz e sossego talvez seja o mundo sadio, de onde estamos, de alguma forma, exilados.
Mas este é um sentimento que não dura, é claro, porque sabemos muito bem do que se trata. O peixe deve estar em constante movimento para se alimentar e escapar de seus predadores, o movimento rápido nada mais é do que uma resposta instântanea de nervos mantidos à flor da pele pelo medo.
E o mesmo sentimento e a mesma análise de sua motivação são provocados pelo voo dos pássaros, movimento das abelhas, agilidade dos esquilos, e por aí vai.
Todos sabemos que esta racionalidade pacífica, esta cultura relaxada, e a calma normalidade da vida humana não passam de uma crosta fina de hábitos reprimindo emoções tão violentas e estranhas que muitos de nós não podemos suportá-las.
E daí, da necessidade de um imperativo de ordem, tudo se inicia: a organização da vida não pode simplesmente acontecer, tem de ser controlada!! E esta necessidade de controle é que nos exila de nós mesmos, da pureza dos sentimentos que, sem os controles sociais, aflorariam em uma blitz sanguinária em sua virulência, e ausência de compaixão. Precisamos sobreviver!!! E com isto, vamos à luta contra esta quimera que nos assombra todo dia ao primeiro olhar no espelho, antes mesmo de escovarmos os dentes: a identidade!!
 Tomar conta de nossas vidas envolve risco, porque supõe enfrentarmos a imensa gama de possibilidades abertas!A escolha diária já se inicia no ato simplório de levantarmos: sim ou não? deste ou daquele lado? e por aí vamos, algumas escolhas já tão automatizadas que nem provocam desgaste e somente são percebidas na ocorrência de um "infausto": um pé quebrado, um músculo retesado e pronto: todo o automatismo se esvai, e a consciência da escolha permanente provoca um cansaço ao qual já não estamos mais acostumados.
A escolha nunca é simples, nunca é sem consequências....é preciso estar ciente, perceber onde é ou foi a encruzilhada e o que nos levou a optar pelo caminho  que seguimos. Então, em um futuro que os ingênuos e crédulos de plantão acreditam não estar tão longe, somente então faremos a opção consciente de sermos felizes.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Orides Fontela

Duas Odes (Antigas)

Deserta é a praia. e grande.
Estéreis os coqueiros, inúteis, e, a areia, demarcação de água
e terra, jaz
vazia a concha: nem mesmo
a espera a fecunda.

A tarde em mim se repete
num tempo irreal, decadência
obstinada, onde o silêncio
nunca é completamente
treva

A tarde em mim se repete
configurando uma distância
irrealizada, evanescência
onde nunca anoitece.

A tarde em mim se
repete
e nunca surgem as estrelas.



Encontrei-a uma vez, acho que uma recepção, reunião, não me lembro mais. Assustei-me, era eu em outro tempo e corpo...E como quase tudo o que me assusta, provocou  uma paixão louca, corri atrás de seus livros como se minha biblioteca fosse um relicário onde fosse preciso estar aquela presença santa.
Adoro a apresentação dela feita pela Folha, onde pode-se ler: ..."o peso da realidade lhe conduzira várias vezes ao suicídio." Isto mesmo, somente alguém como Orides poderia matar-se tantas vezes e ressurgir sempre ela ou outra, sempre reconhecível.

Estrela

Sobre a paisagem um ponto
de luz cósmica completa
e cena fixa
que não a encerra

A estrela completa
a unidade em que
não habita.

Isto mesmo, quantos de nós somos generosos ao ponto de completarmos algo a que não pertencemos? Esse abandono de alma é que faz o verdadeiro poeta, a verdadeira domadora das palavras...

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Cecília Meireles

Rolou um estresse...kkkk... nos comentários sobre a música Canteiros, dada como de autoria de Fagner e Belchior. Na verdade, a música é um mix, que não foi devidamente explicitado quando do lançamento da música e foi preciso uma pendenga judicial para que tudo fosse esclarecido. A história se repetiu com Motivos, o que nem quero discutir aqui. Quando a história se repete, ...bem, deixa prá lá.
O poema origem da música, que não é igual ao que é cantado, é o poema A Marcha:


As ordens da madrugada
romperam por sobre os montes:
nosso caminho se alarga
sem campos verdes nem fontes.
Apenas o sol redondo
e alguma esmola de vento
quebram as formas do sono
com a idéia do movimento.
Vamos a passo e de longe;
entre nós dois anda o mundo,
com alguns mortos pelo fundo.
As aves trazem mentiras
de países sem sofrimento.
Por mais que alargue as pupilas,
mais minha dúvida aumento.
Também não pretendo nada
senão ir andando à toa,
como um número que se arma
e em seguida se esboroa,
- e cair no mesmo poço
de inércia e de esquecimento,
onde o fim do tempo soma
pedras, águas, pensamento.
Gosto da minha palavra
pelo sabor que lhe deste:
mesmo quando é linda, amarga
como qualquer fruto agreste.
Mesmo assim amarga, é tudo
que tenho, entre o sol e o vento:
meu vestido, minha música,
meu sonho e meu alimento.
Quando penso no teu rosto,
fecho os olhos de saudade;
tenho visto muita coisa,
menos a felicidade.
Soltam-se os meus dedos ristes,
dos sonhos claros que invento.
Nem aquilo que imagino
já me dá contentameno.
Como tudo sempre acaba,
oxalá seja bem cedo!
A esperança que falava
tem lábios brancos de medo.
O horizonte corta a vida
isento de tudo, isento…
Não há lágrima nem grito:
apenas consentimento.

A parte em vermelho foi a inspiradora do Fagner, assim como a música do Belchior e Águar de Março, do Tom Jobim. Um bom pout pourri, eu diria...

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Gastão, o Vomitador...


Gastão foi a São Paulo, o que sempre provoca uma sucessão de engulhos em relação ao Rio de Janeiro. Saber que é possível uma vida mais ou menos civilizada tão perto deixa o Gastão, este esperançoso, um tantinho deprimido. O inferno astral em que Gastão vive (são dezessete ou dezenove dias?) não permite que ele encare os percalços diários do carioca com a nonchalance que vem desenvolvendo a duras penas. Sujeira, gente estranha, politicagem, baixarias, não há como Gastão desenvolver anticorpos eficientes...
Ministro do Supremo dizendo-se vítima de pressão apenas não é mais ridículo do que ex-Governador processado por corrupção denunciar corrupção onde não há...O jogo político está ficando sem regras e está ficando difícil apoiar a participação das pessoas sérias.
A moça da barraquinha de um partido que já foi tomado por exemplo de seriedade por crédulos ingênuos admitiu, sem o menor pudor ou modéstia (ah! essas palavras saíram tanto de moda que é preciso explicá-las cada vez que as uso!), que estava em busca de um jeitinho no programa da casa própria...O moço exigindo, em altos brados, que o pessoal que almoçava tranquilamente na área externa do restaurante o alimentasse, já que era pobre e excluído (palavras dele!!Pelo menos, o vocabulário está melhorando, ainda que seja de frases feitas!).
Porteiro de prédio invocando o art. 5º da Constituição para não cumprir ordens ( art. 5º - ...I - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.). Na verdade, foi o faxineiro, mas no momento ele exercia a função de porteiro e não estou aqui para ser processado.
Estamos ficando transformados em cidadãos de direitos sem obrigações correspondentes. Há muito, muito tempo, não escuto nem recebo uma solicitação de trabalho ou emprego. Ou é para dar um jeito nas coisas ou não é nada!!!Definitivo como a má impressão causada ao mundo pela notória incapacidade brasileira de se programar e cumprir acordos firmados por livre e espontânea vontade. Pelo menos admitimos que os estádios para a Copa não vão ficar prontos. E daí???

Gastão tem encontrado refúgio na amizade e no trabalho em casa, mas a depressão tem se instalado de forma triste e permanente. Gastão ama vocês todos, ou quase, podem acreditar, é só um momento em que a realidade bate com tanta força à porta que ela cai em cima de quem estava pronto para abrí-la...

Guimarães Rosa



Está ficando mais citado do que a Clarice Lispector, tadinha. Mas para tudo tem um jeito, ou dois... e o momento exige que eu me lembre do Guima, que também disse que "INfelicidade é uma questão de prefixo.".


O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria, 
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.

João Guimarães Rosa

quarta-feira, 4 de julho de 2012

Jane Shore



Willow

It didn't weep the way a willow should.
Planted all alone in the middle of the field
by the bachelor who sold our house to us,
shoulder height when our daughter was born,
it grew eight feet a year until it blocked
the view through the first-, then the second-
story windows, its straggly canopy obstructing
our sunrise and moonrise over Max Gray Road.
I gave it the evil eye, hoping lightning
would strike it, the way a bolt had split
the butternut by the barn. And if leaf blight
or crown gall or cankers didn’t kill it, then
I'd gladly pay someone to chop it down.
My daughter said no, she loved that tree,
and my husband agreed. One wet Sunday—
husband napping, daughter at a matinee
in town—a wind shear barreled up the hill

so loud I glanced up from my mystery
the moment the willow leaned, bowed,
and fell over flat on its back, roots and all,
splayed on the ground like Gulliver.
The house shook, just once.
Later, when the sun came out, neighbors
came to gawk; they chain-sawed thicker
branches, wrapped chains around the trunk,
their backhoe ripped out pieces of stump
and root as if extracting a rotten tooth.
I'm not sorry that tree is gone. No one
ever sat under it for shade or contemplation.
Yet spring after spring it reliably leafed out.
It was always the last to lose its leaves
in fall. It should have died a decade ago
for all the grief I gave it, my dirty looks
apparently the fuel on which it thrived.
It must have done its weeping in private.
But now I can see the slope of the hill.
Did my wishful thinking cast a spell?
I was the only one on earth who saw it fall.

Noel Coward

Noel Coward é a definição de wit....(depois dele, vem o Quentin Crisp, cujo "The Naked Civil Servant" é uma obra-prima, há o audio book narrado pelo próprio que é perfeito!!!E também tem o filme com o John Hurt, que merecia o Oscar!!!) - e escreveu algumas coisas ótimas. Infelizmente, os contos dele não foram traduzidos, mas são engraçadíssimos e super-espertos. Recomendo, mesmo.

 Só para se ter um gostinho, segue a letra de "Mad About the BOy", apropriadamente gravada pela Dinah Washington.

Mad about the boy It`s pretty funny but I´m mad about the boy
He has a gay appeal
that makes me feel
There´s maybe something sad about the boy
Walking down the street,
his eyes look out at me from people that I meet,

I can't believe it's true
but when I'm blue
in some strange way I'm glad about the boy.
I"m hardly sentimental
Love isn't so sublime
I have to pay my rental
and I can't afford to waste much time,
If I could employ
a little magic that would finally destroy
this dream that pains me
and enchains me
but I can't
because I'm mad about the boy.


A letra tem variações, mas este é o registro mais antigo que encontrei.



segunda-feira, 2 de julho de 2012

Sagrado e Profano

O texto é do Bernardo Carvalho, assim mesmo, íntimo, já que li quase tudo que ele escreveu (Nove Noites, Aberração, Teatro, Mongólia, Os Bêbados, As Iniciais - meu favorito-). Para quem quer se estender no assunto, há Mircea Eliade, o bruxo romeno do pensamento religioso com O Sagrado e o Profano e Mefistófeles e o Andrógino, e tambem Francis Huxley - claro, ele é da família-, com O Sagrado e o Profano.Na verdade, há demais a ser lido, desvende.....

O Filósofo italiano Giorgio Agamben insiste que, ao contrário do que se costuma supor, o sentido da palavra religião não vem de religar o humano ao divino, mas de separar as duas instâncias. A origem do termo estaria no verbo “relegere” (reler), que indica uma atitude de observação e respeito, de atenção e escrúpulo em relação aos rituais e às coisas sagradas: “Não existe religião sem separação”.
Agamben faz o elogio da profanação num livro publicado este ano na Itália e na França: “Profanazioni” (ed. Nottetempo). Profanar é liberar das normas sagradas o que por elas é mantido separado, restrito, intocável. Significa neutralizar a aura, negligenciar essas normas de modo a atribuir um novo uso (humano) ao que se mantinha interdito ao uso. O exemplo mais contundente é o jogo: “A maior parte dos jogos que conhecemos deriva de antigas cerimônias sagradas, de rituais e práticas divinatórias que pertenciam em outros tempos à esfera religiosa em sentido amplo”.
Na verdade, o jogo não abole a esfera do sagrado, mas permite à humanidade se liberar e desviar dela. A dimensão lúdica faz com que comportamentos e objetos que antes tinham uma finalidade já sacralizada passem a existir apenas para o jogo, para um uso diferente daquele que lhes era consagrado. Como uma criança que brinca com um documento legal sem saber do que se trata. O meio passa a ser o próprio fim, um uso sem utilidade.
No capitalismo, entretanto, que é a religião da modernidade, segundo Walter Benjamin, esse profanador do jogo teria sido esvaziado. O processo teria se invertido. O homem moderno e secular procuraria no jogo justamente o sagrado e o ritual perdido.
Seguindo o raciocínio de Benjamin, Agamben mostra que o capitalismo dissemina por toda parte a separação que define a religião. É uma sociedade secular que faz a consagração do profano. Torna o profano inatingível, intocável, improfanável. Tudo é transformado em fetiche. É a esfera do consumo, da exibição e do espetáculo. O capitalismo se apropria do comportamento profanador, lúdico, para anulá-lo e transformá-lo em fetiche de si mesmo. A pornografia é um bom exemplo: a neutralização de uma intenção, em princípio profanadora dos comportamentos eróticos, reduzida ao consumo solitário de uma imagem inatingível (sagrada). “A profanação do improfanável é a tarefa política da geração por vir”, exorta Agamben.
Há duas semanas, numa cidade de província da França, psicologicamente exausto depois de mais um dia numa dessas feiras de literatura em que se reúnem centenas de escritores do mundo inteiro, tentando vender seus livros, eu voltei ao quarto de hotel de madrugada e liguei a televisão na esperança de assistir a alguma coisa que me tirasse dali o mais rápido possível. Para escritores que não são exatamente populares, esses festivais servem antes de mais nada para dar a dimensão exata da rejeição do público. Mas, em compensação têm pelos menos uma utilidade: à força de se falar de tudo menos de literatura, sempre em nome da literatura, fazem sentir saudades dela.
Trocando de canais ao acaso, entre as séries e os programas previsíveis, fui surpreendido pela imagem de uma nudez incongruente . Logo depois de passar por uma emissora que exibia um filme pornográfico típico, desses que podiam muito bem ilustrar o texto de Agamben, deparei-me com uma cena que já era estranha por si só e ficava ainda mais num canal como a Arte, dedicado às manifestações culturais e aos documentários: vários homens nus, comuns, de meia-idade, velhos, gordos ou esqueléticos, muitos deles repugnantes, vagavam, se esfregavam e se ensaboavam, em meio ao vapor e a bacias de água, por salas caindo aos pedaços, com paredes cobertas de azulejos tão amarelados e usados quanto os próprios corpos.
Era um labirinto povoado eventualmente por corpos que passavam e faziam a sua higiene pessoal, indiferentes uns aos outros e à câmera, na mais completa intimidade, sozinhos ou em duplas, uns esfregando os outros, às vezes pais e filhos pequenos, velhos com poucos anos de vida pela frente etc., sem nunca dizerem nada uns aos outros. Ao contrário dos corpos assépticos do filme pornográfico do outro canal, estes permaneciam demasiado humanos, por mais que se esfregassem.
Para completar o aspecto inesperado das imagens, não faltava lugar para um desejo embutido no que parecia repugnante. Era difícil trocar de canal. A certa altura, uma seqüência de corpos jovens e musculosos, caminhando em círculos, como uma coreografia, introduzia um contraponto à decrepitude geral, remetendo a um momento anterior na vida desses corpos usados. O cuidado e a preocupação de todos consigo mesmos revelava uma dimensão misteriosa do desejo, em que saltava aos olhos a consciência silenciosa da própria finitude.
Só alguns dias depois, fui descobrir, numa revista, que o filme se chamava “Les Bains” (os banhos) e que seu diretor, o francês David Teboul, o tinha rodado em alguma parte da Rússia, com gente anônima. O artigo atribuía ao filme o “caráter sagrado de uma cerimônia pagã”. Achei graça. Pensei no elogio que Agamben faz da profanação. Em “Les Bains”, o desejo está fora do lugar. É um desejo ao mesmo tempo reflexivo e enigmático, porque encontrou um novo uso para os comportamentos eróticos, restituindo a “capacidade humana de profaná-los, desligando-os da sua finalidade imediata”.