terça-feira, 15 de julho de 2008

A.M. Pires Cabral

Coffee break

Após a difícil, exaustiva
contemplação da paisagem,
descemos ao bar
para um merecido coffee break.

O café é um bom digestivo
para a compacta barrigada de estesias
vividas no tombadilho.
Qualquer coisa de tangível,
literal, a que é bom
agarrar-se um poeta quando em risco
de levitação.

Depois, dispersos pelas poltronas,
imitamos o criado do bar,
servindo uns aos outros
poemas e agudezas similares
em porcelana fina.

No fim, na cumplicidade
de quem tem tão denodadamente
gargarejado o Douro,
cada qual a seu modo e em seu tom,
piscamo-nos os olhos,
achamos que somos os maiores.

Isto é: cada um acha
que ele próprio é o maior –
não desdenhando embora
prestar homenagem à segunda
mas ainda assim grande grandeza
dos demais.

Abençoado Douro, abençoada
alquimia do Douro!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Manoel de Barros

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
de "O Guardador de Águas"


I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

sábado, 12 de julho de 2008

Bruno Tolentino

O ESPECTRO

(A Ivan Junqueira)


Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Ossip Mandelstam II



Definição de Poesia

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, afolha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim um estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

(1917)
Tradução de Haroldo de Campos

terça-feira, 8 de julho de 2008

Ossip Mandelstam

Ossip Mandelshtam


A Era

Minha era, minha fera, quem ousa,
Olhando nos teus olhos, com sangue,
Colar a coluna de tuas vértebras?
Com cimento de sangue - dois séculos -
Que jorra da garganta das coisas?
Treme o parasita, espinha langue,
Filipenso ao umbral de horas novas.

Todo ser enquanto a vida avança
Deve suportar esta cadeia
Oculta de vértebras. Em torno
Jubila uma onda. E a vida como
Frágil cartilagem de criança
Parte seu ápex: morte da ovelha,
A idade da terra em sua infância.

Junta as partes nodosas dos dias:
Soa a flauta, e o mundo está liberto,
Soa a flauta, e a vida se recria.
Angústia! A onda do tempo oscila
Batida pelo vento do século.
E a víbora na relva respira
O outo da idade, áurea medida.


Vergônteas de nova primavera!
Mas a espinha partiu-se da fera,
Bela era lastimável. Era,
Ex-pantera flexível, que volve
Para trás, riso absurdo, e descobre
Dura e dócil, na meada dos rastros,
As pegadas de seus próprios passos.


(1923)



Tradução de Haroldo de Campos

terça-feira, 1 de julho de 2008



"We are born with a scream; we come into life with a scream, and maybe love is a
mosquito net between the fear of living and the fear of death."