O texto abaixo é da Professora Guacira Lopes Louro e foi retirado do
sítio www.scielo.br. Não pedi licença para reproduzi-lo aqui, caso haja
problemas, post um comentário que eu retiro o texto.
Teoria queer - uma política pós-identitária para a educação
Resumo:
As chamadas "minorias" sexuais são, hoje, muito mais visíveis do que
antes, e, conseqüentemente, torna-se mais acirrada a luta entre elas e
os grupos conservadores. Esse embate, que merece uma especial atenção de
estudiosos/as culturais e educadores/as, torna-se ainda mais complexo
se pensarmos que o grande desafio não consiste, apenas, em assumir que
as posições de gênero e sexuais se multiplicaram e escaparam dos
esquemas binários; mas também em admitir que as fronteiras vêm sendo
constantemente atravessadas e que o lugar social no qual alguns sujeitos
vivem é exatamente a fronteira. Uma nova dinâmica dos movimentos (e das
teorias) sexuais e de gênero está em ação. É dentro desse quadro que a
teoria queer precisa ser compreendida. Admitindo que uma política de
identidade pode se tornar cúmplice do sistema contra o qual ela pretende
se insurgir, teóricos/as queer sugerem uma teoria e uma política
pós-identitárias. Inspirados no pós-estruturalismo francês, dirigem sua
crítica à oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a
categoria central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as
relações entre os sujeitos. O que, afinal, esta teoria tem a dizer para o
campo da Educação?
Palavras-chave: teoria queer e educação, política de identidade e de pós-identidade, pedagogia queer
Nos
dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto privilegiado do
olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores,
passando a se constituir, efetivamente, numa 'questão'. Desde então, ela
vem sendo descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada,
educada, normatizada, a partir das mais diversas perspectivas. Se, nos
dias de hoje, ela continua alvo da vigilância e do controle, agora
ampliaram-se e diversificaram-se suas formas de regulação,
multiplicaram-se as instâncias e as instituições que se autorizam a
ditar-lhe as normas, a definir-lhe os padrões de pureza, sanidade ou
insanidade, a delimitar-lhe os saberes e as práticas pertinentes,
adequados ou infames. Ao lado de instituições tradicionais, como o
Estado, as igrejas ou a ciência, agora outras instâncias e outros grupos
organizados reivindicam, sobre ela, suas verdades e sua ética. Foucault
certamente diria que, contemporaneamente, proliferam cada vez mais os
discursos sobre o sexo e que as sociedades continuam produzindo,
avidamente, um "saber sobre o prazer" ao mesmo tempo que experimentam o
"prazer de saber".(1)
Hoje, as chamadas "minorias"
sexuais estão muito mais visíveis e, conseqüentemente, torna-se mais
explícita e acirrada a luta entre elas e os grupos conservadores. A
denominação que lhes é atribuída parece, contudo, bastante imprópria.
Como afirma em seu editorial a revista La Gandhi Argentina,(2)"as
minorias nunca poderiam se traduzir como uma inferioridade numérica mas
sim como maiorias silenciosas que, ao se politizar, convertem o gueto em
território e o estigma em orgulho ¾ gay, étnico, de gênero". Sua
visibilidade tem efeitos contraditórios: por um lado, alguns setores
sociais passam a demonstrar uma crescente aceitação da pluralidade
sexual e, até mesmo, passam a consumir alguns de seus produtos
culturais; por outro lado, setores tradicionais renovam (e recrudescem)
seus ataques, realizando desde campanhas de retomada dos valores
tradicionais da família até manifestações de extrema agressão e
violência física.
O embate por si só merece uma
especial atenção de estudiosos/as culturais e educadores/as. Mas o que o
torna ainda mais complexo é sua contínua transformação e instabilidade.
O grande desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e
sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas
apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as fronteiras vêm
sendo constantemente atravessadas e , o que é ainda mais complicado ,
que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a
fronteira.
Escola, currículos, educadoras e educadores
não conseguem se situar fora dessa história. Mostram-se, quase sempre,
perplexos, desafiados por questões para as quais pareciam ter, até pouco
tempo atrás, respostas seguras e estáveis. Agora as certezas escapam,
os modelos mostram-se inúteis, as fórmulas são inoperantes. Mas é
impossível estancar as questões. Não há como ignorar as 'novas'
práticas, os 'novos' sujeitos, suas contestações ao estabelecido. A
vocação normalizadora da Educação vê-se ameaçada. O anseio pelo cânone e
pelas metas confiáveis é abalado. A tradição pragmática leva a
perguntar: que fazer? A aparente urgência das questões não permite que
se antecipe qualquer resposta; antes é preciso conhecer as condições que
possibilitaram a emergência desses sujeitos e dessas práticas.
Construindo uma política de identidade
A
homossexualidade e o sujeito homossexual são invenções do século XIX.
Se antes as relações amorosas e sexuais entre pessoas do mesmo sexo eram
consideradas como sodomia (uma atividade indesejável ou pecaminosa à
qual qualquer um poderia sucumbir), tudo mudaria a partir da segunda
metade daquele século: a prática passava a definir um tipo especial de
sujeito que viria a ser assim marcado e reconhecido. Categorizado e
nomeado como desvio da norma, seu destino só poderia ser o segredo ou a
segregação , um lugar incômodo para permanecer. Ousando se expor a todas
as formas de violência e rejeição social, alguns homens e mulheres
contestam a sexualidade legitimada e se arriscam a viver fora de seus
limites. A ciência, a Justiça, as igrejas, os grupos conservadores e os
grupos emergentes irão atribuir a esses sujeitos e a suas práticas
distintos sentidos. A homossexualidade, discursivamente produzida,
transforma-se em questão social relevante. A disputa centra-se
fundamentalmente em seu significado moral. Enquanto alguns assinalam o
caráter desviante, a anormalidade ou a inferioridade do homossexual,
outros proclamam sua normalidade e naturalidade , mas todos parecem
estar de acordo de que se trata de um 'tipo' humano distintivo.
Esses
são os discursos mais expressivos que circulam nas sociedades
ocidentais, pelo menos até o início dos anos de 1970. O movimento de
organização dos grupos homossexuais é, ainda, tímido; suas associações e
reuniões suportam, quase sempre, a clandestinidade. Aos poucos,
especialmente em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, um
aparato cultural começa a surgir: revistas, artigos isolados em jornais,
panfletos, teatro, arte. No Brasil, por essa época, a homossexualidade
também começa a aparecer nas artes, na publicidade e no teatro. Alguns
artistas(3) apostam na ambigüidade sexual, tornando-a sua marca e, desta
forma, perturbando, com suas performances, não apenas as platéias, mas
toda a sociedade. A partir de 1975, emerge o Movimento de Libertação
Homossexual no Brasil, do qual participam, entre outros, intelectuais
exilados/as durante a ditadura militar e que traziam, de sua experiência
no exterior, inquietações políticas feministas, sexuais, ecológicas e
raciais que então circulavam internacionalmente.
Nos
grandes centros, os termos do debate e da luta parecem se modificar. A
homossexualidade deixa de ser vista (pelo menos por alguns setores) como
uma condição uniforme e universal e passa ser compreendida como
atravessada por dimensões de classe, etnicidade, raça, nacionalidade
etc. A ação política empreendida por militantes e apoiadores torna-se
mais visível e assume um caráter libertador. Suas críticas voltam-se
contra a heterossexualização da sociedade. A agenda da luta também se
pluraliza: para alguns o alvo é a integração social ¾ a integração numa
sociedade múltipla, talvez andrógina e polimorfa; para outros
(especialmente para as feministas lésbicas) o caminho é a separação ¾ a
construção de uma comunidade e de uma cultura próprias. Intelectuais,
espalhados em algumas instituições internacionais, mostram sua afinidade
com o movimento, publicam ensaios em jornais e revistas e revelam sua
estreita ligação com os grupos militantes.
Pouco a
pouco constrói-se a idéia de uma comunidade homossexual. Conforme
Spargo,(4) ao final dos anos 70, a política gay e lésbica abandonava o
modelo que pretendia a libertação através da transformação do sistema e
se encaminhava para um modelo que poderia ser chamado de 'étnico'. Gays e
lésbicas eram representados como "um grupo minoritário, igual mas
diferente"; um grupo que buscava alcançar igualdade de direitos no
interior da ordem social existente. Afirmava-se, discursiva e
praticamente, uma identidade homossexual.
A afirmação
da identidade supunha demarcar suas fronteiras e implicava numa disputa
quanto às formas de representá-la. Imagens homofóbicas e personagens
estereotipados exibidos na mídia e nos filmes são contrapostos por
representações 'positivas' de homossexuais. Reconhecer-se nessa
identidade é questão pessoal e política. O dilema entre 'assumir-se' ou
'permanecer enrustido' (no armário ,closet) passa a ser considerado um
divisor fundamental e um elemento indispensável para a comunidade. Na
construção da identidade, a comunidade funciona como o lugar da acolhida
e do suporte, uma espécie de lar. Portanto, haveria apenas uma resposta
aceitável para o dilema (repetindo uma frase de Spargo, to come home,
of course, you first had to 'come out'(5)): para fazer parte da
comunidade homossexual, seria indispensável, antes de tudo, que o
indivíduo se 'assumisse', isto é, revelasse seu 'segredo', tornando
pública sua condição.
Também no Brasil, ao final dos
anos 70, o movimento homossexual ganha mais força: surgem jornais
ligados aos grupos organizados, promovem-se reuniões de discussão e de
ativismo, as quais, segundo conta João Silvério Trevisan, se faziam ao
"estilo do gay conscious raising group americano", buscando "tomar
consciência de seu próprio corpo/sexualidade" e construir "uma
identidade enquanto grupo social".(6)
Em conexão com o
movimento político (não apenas como seu efeito mas também como sua parte
integrante), cresce, internacionalmente, o número de trabalhadores/as
culturais e intelectuais que se assumem na mídia, na imprensa, nas artes
e nas universidades. Entre esses, alguns passam a "fazer da
homossexualidade um tópico de suas pesquisas e teorizações".(7) Sem
romper com a política de identidade, colocam em discussão sua concepção
como um fenômeno fixo, trans-histórico e universal e voltam suas
análises para as condições históricas e sociais do seu surgimento na
sociedade ocidental. No Brasil (de forma mais visível a partir de 1980),
a temática também passa a se constituir como questão acadêmica, na
medida em que, em algumas universidades e grupos de pesquisa, vem a ser
discutida, especialmente com apoio nas teorizações de Michel Foucault.
O
discurso político e teórico que produz a representação 'positiva' da
homossexualidade também exerce, é claro, um efeito regulador e
disciplinador. Ao afirmar uma dada posição-de-sujeito, supõe,
necessariamente, o estabelecimento de seus contornos, seus limites, suas
possibilidades e restrições. Nesse discurso, é a escolha do objeto
amoroso que define a identidade sexual e, sendo assim, a identidade gay
ou lésbica assenta-se na preferência em manter relações sexuais com
alguém do mesmo sexo. Contudo, essa definição de identidade sexual,
aparentemente indiscutível, poderia ser posta em questão:
Como
a História da Sexualidade de Foucault havia mostrado, tal escolha do
objeto nem sempre tinha se constituído a base para uma identidade e,
como muitas vozes discordantes sugeriam, esse não era, inevitavelmente, o
fator crucial na percepção de toda e qualquer pessoa sobre sua
sexualidade. Este modelo fazia, efetivamente, com que os bissexuais
parecessem ter uma identidade menos segura ou menos desenvolvida (assim
como os modelos essencialistas de gênero fazem dos trans-sexuais
sujeitos incompletos), e excluía grupos que definiam sua sexualidade
através de atividades e prazeres mais do que através das preferências de
gênero, tais como os/as sadomasoquistas.(8)
Com esses
contornos, a política de identidade praticada durante os anos 70
assumia um caráter unificador e assimilacionista, buscando a aceitação e
a integração dos/das homossexuais no sistema social. A maior
visibilidade de gays e lésbicas sugeria que o movimento já não
perturbava o status quo como antes. No entanto, tensões e críticas
internas já se faziam sentir. Para muitos (especialmente para os grupos
negros, latinos e jovens), as campanhas políticas estavam marcadas pelos
valores brancos e de classe média e adotavam, sem questionar, ideais
convencionais, como o relacionamento comprometido e monogâmico; para
algumas lésbicas, o movimento repetia o privilegiamento masculino
evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com que suas
reivindicações e experiências continuassem secundárias face às dos
homens gays; para bissexuais, sadomasoquistas e trans-sexuais essa
política de identidade era excludente e mantinha sua condição
marginalizada. Mais do que diferentes prioridades políticas defendidas
pelos vários 'sub-grupos', o que estava sendo posto em xeque, nesses
debates, era a concepção da identidade homossexual unificada que vinha
se constituindo na base de tal política de identidade. A comunidade
apresentava importantes fraturas internas e seria cada vez mais difícil
silenciar as vozes discordantes.
No início dos anos 80,
o surgimento da Aids agregaria novos elementos a este quadro.
Apresentada, inicialmente, como o 'câncer gay', a doença teve o efeito
imediato de renovar a homofobia latente da sociedade, intensificando a
discriminação já demonstrada por certos setores sociais. A intolerância,
o desprezo e a exclusão, aparentemente abrandados pela ação da
militância homossexual, mostravam-se mais uma vez intensos e
exacerbados. Simultaneamente, a doença também teve um impacto que alguns
denominaram de 'positivo', na medida em que provocou o surgimento de
redes de solidariedade. O resultado são alianças não necessariamente
baseadas na identidade, mas sim num sentimento de afinidade que une
tanto os sujeitos atingidos (muitos, certamente, não-homossexuais)
quanto seus familiares, amigos, trabalhadores e trabalhadoras da área da
saúde, etc. As redes escapam, portanto, dos contornos da comunidade
homossexual tal como era definida até então. O combate à doença também
acarreta um deslocamento nos discursos a respeito da sexualidade, agora
os discursos se dirigem menos às identidades e se concentram mais nas
práticas sexuais (ao enfatizar, por exemplo, a prática do sexo seguro).
Especificamente
em relação à sociedade brasileira, João Silvério Trevisan comenta que,
devido à Aids, foi ampliada a discussão a respeito da homossexualidade.
Diante da expansão da doença e de sua associação com a homossexualidade,
"a metáfora, tantas vezes empregada nas entrelinhas ¾ de que a
homossexualidade pega quase deixou de ser metáfora".(9) A homofobia
mostrava-se com toda sua crueza. A partir desse momento, segundo ele,
além de se tornar mais evidente o desejo homossexual, ocorreu uma
espécie de "efeito colateral da epidemia sexualizada": a deflagração de
uma "epidemia de informação".(10)
Para ele, o vírus da
Aids realizou em alguns anos uma proeza que nem o mais bem-intencionado
movimento pelos direitos homossexuais teria conseguido, em muitas
décadas: deixar evidente à sociedade que homossexual existe e não é o
outro, no sentido de um continente à parte, mas está muito próximo de
qualquer cidadão comum, talvez ao meu lado e , isto é importante!,
dentro de cada um de nós, pelo menos enquanto virtualidade.(11)
Já
se haviam ampliado, então, consideravelmente, os grupos ativistas no
Brasil, não apenas de gays mas também de lésbicas. Pelas características
políticas que o país vivia, o movimento homossexual brasileiro via-se
dividido entre a possibilidade de se integrar aos partidos políticos ou
de continuar sua luta de forma independente, e isso se constituía em
mais uma de suas tensões internas.
Em termos globais,
multiplicam-se os movimentos e os seus propósitos: alguns grupos
homossexuais permanecem lutando por reconhecimento e por legitimação,
buscando sua inclusão, em termos igualitários, ao conjunto da sociedade;
outros estão preocupados em desafiar as fronteiras tradicionais de
gênero e sexuais, pondo em xeque as dicotomias masculino/feminino,
homem/mulher, heterossexual/homossexual; e ainda outros não se contentam
em atravessar as divisões mas decidem viver a ambigüidade da própria
fronteira. A nova dinâmica dos movimentos sexuais e de gênero provoca
mudanças nas teorias e, ao mesmo tempo, é alimentada por elas.
A
agenda teórica moveu-se da análise das desigualdades e das relações de
poder entre categorias sociais relativamente dadas ou fixas (homens e
mulheres, gays e heterossexuais) para o questionamento das próprias
categorias, sua fixidez, separação ou limites, e para ver o jogo do
poder ao redor delas como menos binário e menos unidirecional.(12)
A
política de identidade homossexual estava em crise e revelava suas
fraturas e insuficiências. Gradativamente, surgiriam, pois, proposições e
formulações teóricas pós-identitárias. É precisamente dentro desse
quadro que a afirmação de uma política e de uma teoria queer precisa ser
compreendida.
Uma teoria e uma política pós-identitária
Queer
pode ser traduzido por estranho, talvez ridículo, excêntrico, raro,
extraordinário. Mas a expressão também se constitui na forma pejorativa
com que são designados homens e mulheres homossexuais. Um insulto que
tem, para usar o argumento de Judith Butler,(13) a força de uma
invocação sempre repetida, um insulto que ecoa e reitera os gritos de
muitos grupos homófobos, ao longo do tempo, e que, por isso, adquire
força, conferindo um lugar discriminado e abjeto àqueles a quem é
dirigido. Este termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é
assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para
caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. Para esse
grupo, queer significa colocar-se contra a normalização, venha ela de
onde vier. Seu alvo mais imediato de oposição é, certamente, a
heteronormatividade compulsória da sociedade; mas não escaparia de sua
crítica a normalização e a estabilidade propostas pela política de
identidade do movimento homossexual dominante. Queer representa
claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e,
portanto, sua forma de ação é muito mais transgressiva e
perturbadora.(14)
A política queer está estreitamente
articulada à produção de um grupo de intelectuais que, ao redor dos anos
90, passa a utilizar este termo para descrever seu trabalho e sua
perspectiva teórica. Ainda que esse seja um grupo internamente bastante
diversificado, capaz de expressar divergências e de manter debates
acalorados, há entre seus integrantes algumas aproximações
significativas. Diz Seidman:
Os/as teóricos/as queer
constituem um agrupamento diverso que mostra importantes desacordos e
divergências. Não obstante, eles/elas compartilham alguns compromissos
amplos ¾ em particular, apóiam-se fortemente na teoria
pós-estruturalista francesa e na desconstrução como um método de crítica
literária e social; põem em ação, de forma decisiva, categorias e
perspectivas psicanalíticas; são favoráveis a uma estratégia
descentradora ou desconstrutiva que escapa das proposições sociais e
políticas programáticas positivas; imaginam o social como um texto a ser
interpretado e criticado com o propósito de contestar os conhecimentos e
as hierarquias sociais dominantes.(15)
As condições
que possibilitam a emergência do movimento queer ultrapassam, pois,
questões pontuais da política e da teorização gay e lésbica e precisam
ser compreendidas dentro do quadro mais amplo do pós-estruturalismo.
Efetivamente, a teoria queer pode ser vinculada às vertentes do
pensamento ocidental contemporâneo que, ao longo do século XX,
problematizaram noções clássicas de sujeito, de identidade, de agência,
de identificação.
Já no início do século, o sujeito
racional, coerente e unificado é abalado por Freud com suas formulações
sobre o inconsciente e a vida psíquica. A existência de desejos e idéias
ignorados pelo próprio indivíduo e sobre os quais ele não tem controle é
devastadoras para o pensamento racional vigente: ao ignorar seus
desejos mais profundos, ao se mostrar incapaz de controlar suas
lembranças, o sujeito se 'desconhece' e, portanto, deixa de ser 'senhor
de si'. Mais tarde, Lacan perturba qualquer certeza sobre o processo de
identificação e de agência, ao afirmar que o sujeito nasce e cresce sob o
olhar do outro, que ele só pode saber de si através do outro, ou
melhor, que ele sempre se percebe e se constitui nos termos do outro.
Longe de ser estável e coeso, esse é um sujeito dividido, que vive,
constantemente, a inútil busca da completude. As possibilidades de
autodeterminação e de agência também são postas em xeque pela teorização
de Althusser quando este demonstra como os sujeitos são interpelados e
capturados pela ideologia. Conforme Althusser, ao se entregar à
ideologia, o sujeito realiza, de forma aparentemente livre, seu próprio
processo de sujeição.
Ao lado dessas teorizações que
problematizaram de forma radical a racionalidade moderna, destacam-se os
insights de Michel Foucault sobre a sexualidade, diretamente relevantes
para a formulação da teoria queer. Conforme Foucault, vivemos, já há
mais de um século, numa sociedade que "fala prolixamente de seu próprio
silêncio, obstina-se em detalhar o que não diz, denuncia os poderes que
exerce e promete liberar-se das leis que a fazem funcionar".(16) Ele
desconfia desse alegado silêncio e, contrariando tal hipótese, afirma
que o sexo foi, na verdade, "colocado em discurso": temos vivido
mergulhados em múltiplos discursos sobre a sexualidade, pronunciados
pela igreja, pela psiquiatria, pela sexologia, pelo direito...
Empenha-se em descrever esses discursos e seus efeitos, analisando não
apenas como, através deles, se produziram e se multiplicaram as
classificações sobre as 'espécies' ou 'tipos' de sexualidade, mas também
como se ampliaram os modos de controlá-la. Tal processo tornou
possível, segundo ele, a formação de um "discurso reverso", isto é, um
discurso produzido a partir do lugar que tinha sido apontado como a sede
da perversidade, como o lugar do desvio e da patologia: a
homossexualidade. Mas Foucault ultrapassa amplamente o esquema binário
de oposição entre dois tipos de discursos, acentuando que vivemos uma
proliferação e uma dispersão de discursos, bem como uma dispersão de
sexualidades. Diz ele:
assistimos a uma explosão
visível das sexualidades heréticas, mas sobretudo - e é esse o ponto
importante - a um dispositivo bem diferente da lei: mesmo que se apóie
localmente em procedimentos de interdição, ele assegura, através de uma
rede de mecanismos entrecruzados, a proliferação de prazeres específicos
e a multiplicação de sexualidades disparatadas.(17)
A
construção discursiva das sexualidades, exposta por Foucault, vai se
mostrar fundamental para a teoria queer. Da mesma forma, a operação de
desconstrução, proposta por Jacques Derrida, parecerá, para muitos
teóricos e teóricas, o procedimento metodológico mais produtivo.
Conforme Derrida, a lógica ocidental opera, tradicionalmente, através de
binarismos: este é um pensamento que elege e fixa como fundante ou como
central uma idéia, uma entidade ou um sujeito, determinando, a partir
desse lugar, a posição do 'outro', o seu oposto subordinado. O termo
inicial é compreendido sempre como superior, enquanto que o outro é o
seu derivado, inferior. Derrida afirma que essa lógica poderia ser
abalada através de um processo desconstrutivo que estrategicamente
revertesse, desestabilizasse e desordenasse esses pares. Desconstruir um
discurso implicaria em minar, escavar, perturbar e subverter os termos
que afirma e sobre os quais o próprio discurso se afirma. Desconstruir
não significa destruir, como lembra Barbara Johnson ,(18) mas "está
muito mais perto do significado original da palavra análise, que,
etimologicamente, significa desfazer". Portanto, ao se eleger a
desconstrução como procedimento metodológico, está se indicando um modo
de questionar ou de analisar e está se apostando que esse modo de
análise pode ser útil para desestabilizar binarismos lingüísticos e
conceituais (ainda que se trate de binarismos tão seguros como
homem/mulher, masculinidade/feminilidade). A desconstrução das oposições
binárias tornaria manifesta a interdependência e a fragmentação de cada
um dos pólos. Trabalhando para mostrar que cada pólo contém o outro, de
forma desviada ou negada, a desconstrução indica que cada pólo carrega
vestígios do outro e depende desse outro para adquirir sentido. A
operação sugere também o quanto cada pólo é, em si mesmo, fragmentado e
plural. Para os teóricos/as queer, a oposição
heterossexualidade/homossexualidade - onipresente na cultura ocidental
moderna - poderia ser efetivamente criticada e abalada por meio de
procedimentos desconstrutivos.
Na medida em que queer
sinaliza para o estranho, para a contestação, para o que está
fora-do-centro, seria incoerente supor que a teoria se reduzisse a uma
'aplicação' ou a uma extensão de idéias fundadoras. Os teóricos e
teóricas queer fazem um uso próprio e transgressivo das proposições das
quais se utilizam, geralmente para desarranjar e subverter noções e
expectativas. É o caso de Judith Butler, uma das mais destacadas
teóricas queer. Ao mesmo tempo em que reafirma o caráter discursivo da
sexualidade, ela produz novas concepções a respeito de sexo,
sexualidade, gênero. Butler afirma que as sociedades constroem normas
que regulam e materializam o sexo dos sujeitos e que essas "normas
regulatórias" precisam ser constantemente repetidas e reiteradas para
que tal materialização se concretize. Contudo, ela acentua que "os
corpos não se conformam, nunca, completamente, às normas pelas quais sua
materialização é imposta",(19) daí que essas normas precisam ser
constantemente citadas, reconhecidas em sua autoridade, para que possam
exercer seus efeitos. As normas regulatórias do sexo têm, portanto, um
caráter performativo, isto é, têm um poder continuado e repetido de
produzir aquilo que nomeiam e, sendo assim, elas repetem e reiteram,
constantemente, as normas dos gêneros na ótica heterossexual.
Judith
Butler toma emprestado da lingüística o conceito de performatividade,
para afirmar que a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz
apenas uma constatação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante
mesmo da nomeação, constrói, 'faz' aquilo que nomeia, isto é, produz os
corpos e os sujeitos. Esse é um processo constrangido e limitado desde
seu início, pois o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não
assumir; na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem
possibilidades que ele assume, apropria e materializa. Ainda que essas
normas reiterem sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade,
paradoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos corpos que a
elas não se ajustam. Esses serão constituídos como sujeitos "abjetos" ¾
aqueles que escapam da norma. Mas, precisamente por isso, esses sujeitos
são socialmente indispensáveis, já que fornecem o limite e a fronteira,
isto é, fornecem "o exterior" para os corpos que "materializam a
norma", os corpos que efetivamente "importam".(20)
Butler,
como outros teóricos queer, volta sua crítica e sua argumentação para a
oposição binária heterossexual/homossexual. Esses teóricos e teóricas
afirmam que a oposição preside não apenas os discursos homofóbicos, mas
continua presente, também, nos discursos favoráveis à homossexualidade.
Seja para defender a integração dos/as homossexuais ou para reivindicar
uma espécie ou uma comunidade em separado; seja para considerar a
sexualidade como originariamente 'natural' ou para considerá-la como
socialmente construída, esses discursos não escapam da referência à
heterossexualidade como norma. Conforme Seidman, "permanece intocado o
binarismo heterossexual/homossexual como a referência mestra para a
construção do eu, do conhecimento sexual e das instituições
sociais".(21) Esse posicionamento parece insuficiente, uma vez que não
abala, de fato, o regime vigente. Segundo os teóricos e teóricas queer é
necessário empreender uma mudança epistemológica que efetivamente rompa
com a lógica binária e com seus efeitos: a hierarquia, a classificação,
a dominação e a exclusão. Uma abordagem desconstrutiva permitiria
compreender a heterossexualidade e a homossexualidade como
interdependentes, como mutuamente necessárias e como integrantes de um
mesmo quadro de referências. A afirmação da identidade implica sempre a
demarcação e a negação do seu oposto, que é constituído como sua
diferença. Esse 'outro' permanece, contudo, indispensável. A identidade
negada é constitutiva do sujeito, fornece-lhe o limite e a coerência e,
ao mesmo tempo, assombra-o com a instabilidade. Numa ótica
desconstrutiva, seria demonstrada a mútua implicação/constituição dos
opostos e se passaria a questionar os processos pelos quais uma forma de
sexualidade (a heterossexualidade) acabou por se tornar a norma, ou,
mais do que isso, passou a ser concebida como 'natural'.
Ao
alertar para o fato de que uma política de identidade pode se tornar
cúmplice do sistema contra o qual ela pretende se insurgir, os teóricos e
as teóricas queer sugerem uma teoria e uma política pós-identitárias. O
alvo dessa política e dessa teoria não seriam propriamente as vidas ou
os destinos de homens e mulheres homossexuais, mas sim a crítica à
oposição heterossexual/homossexual, compreendida como a categoria
central que organiza as práticas sociais, o conhecimento e as relações
entre os sujeitos. Trata-se, portanto, de uma mudança no foco e nas
estratégias de análise; trata-se de uma outra perspectiva epistemológica
que está voltada, como diz Seidman, para a cultura, para as "estruturas
lingüísticas ou discursivas" e para seus "contextos institucionais":
A
teoria queer constitui-se menos numa questão de explicar a repressão ou
a expressão de uma minoria homossexual do que numa análise da figura
hetero/homossexual como um regime de poder/saber que molda a ordenação
dos desejos, dos comportamentos e das instituições sociais, das relações
sociais - numa palavra, a constituição do self e da sociedade.(22)
Uma pedagogia e um currículo queer
Como
um movimento que se remete ao estranho e ao excêntrico pode se
articular com a Educação, tradicionalmente o espaço da normalização e do
ajustamento? Como uma teoria não-propositiva pode 'falar' a um campo
que vive de projetos e de programas, de intenções, objetivos e planos de
ação? Qual o espaço, nesse campo usualmente voltado ao disciplinamento e
à regra, para a transgressão e para a contestação? Como romper com
binarismos e pensar a sexualidade, os gêneros e os corpos de uma forma
plural, múltipla e cambiante? Como traduzir a teoria queer para a
prática pedagógica?
Para ensaiar respostas a tais
questões é preciso ter em mente não apenas o alvo mais imediato e direto
da teoria queer: o regime de poder-saber que, assentado na oposição
heterossexualidade/homossexualidade, dá sentido às sociedades
contemporâneas, mas também considerar as estratégias, os procedimentos e
as atitudes nela implicados. A teoria queer permite pensar a
ambigüidade, a multiplicidade e a fluidez das identidades sexuais e de
gênero mas, além disso, também sugere novas formas de pensar a cultura, o
conhecimento, o poder e a educação.
Tomaz Tadeu da Silva argumenta que,tal
como o feminismo, a teoria queer efetua uma verdadeira reviravolta
epistemológica. A teoria queer quer nos fazer pensar queer (homossexual,
mas também "diferente") e não straight (heterossexual, mas também
"quadrado"): ela nos obriga a considerar o impensável, o que é proibido
pensar, em vez de simplesmente considerar o pensável, o que é permitido
pensar. (...) O queer se torna, assim, uma atitude epistemológica que
não se restringe à identidade e ao conhecimento sexuais, mas que se
estende para o conhecimento e a identidade de modo geral. Pensar queer
significa questionar, problematizar, contestar, todas as formas
bem-comportadas de conhecimento e de identidade. A epistemologia queer
é, neste sentido, perversa, subversiva, impertinente, irreverente,
profana, desrespeitosa.(23)
Uma pedagogia e um
currículo queer se distinguiriam de programas multiculturais bem
intencionados, onde as diferenças (de gênero, sexuais ou étnicas) são
toleradas ou são apreciadas como curiosidades exóticas. Uma pedagogia e
um currículo queer estariam voltados para o processo de produção das
diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a
precariedade de todas as identidades. Ao colocar em discussão as formas
como o 'outro' é constituído, levariam a questionar as estreitas
relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do
outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável
para a existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e
constituindo o eu. A diferença deixaria de estar ausente para estar
presente: fazendo sentido, assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao
se dirigir para os processos que produzem as diferenças, o currículo
passaria a exigir que se prestasse atenção ao jogo político aí
implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural, seria
imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das
negociações constitutivos das posições que os sujeitos ocupam.
Dentro
desse quadro, a polarização heterossexual/homossexual seria
questionada. Analisada a mútua dependência dos pólos, estariam colocadas
em xeque a naturalização e a superioridade da heterossexualidade. O
combate à homofobia, uma meta ainda importante, precisaria avançar. Para
uma pedagogia e um currículo queer não seria suficiente denunciar a
negação e o submetimento dos/as homossexuais, e sim desconstruir o
processo pelo qual alguns sujeitos se tornam normalizados e outros
marginalizados. Tornar evidente a heteronormatividade, demonstrando o
quanto é necessária a constante reiteração das normas sociais
regulatórias a fim de garantir a identidade sexual legitimada. Analisar
as estratégias, públicas e privadas, dramáticas ou discretas, que são
mobilizadas, coletiva e individualmente, para vencer o medo e a atração
das identidades desviantes e para recuperar uma suposta estabilidade no
interior da identidade-padrão.
Problematizar, também,
as estratégias normalizadoras que, no quadro de outras identidades
sexuais (e também no contexto de outros grupos identitários, como os de
raça, nacionalidade ou classe),(24) pretendem ditar e restringir as
formas de viver e de ser. Pôr em questão as classificações e os
enquadramentos. Apreciar a transgressão e o atravessamento das
fronteiras (de toda ordem), explorar a ambigüidade e a fluidez.
Reinventar e reconstruir, como prática pedagógica, estratégias e
procedimentos acionados pelos ativistas queer, como, por exemplo, a
estratégia de "mostrar o queer naquilo que é pensado como normal e o
normal no queer".(25)
Transferir a outras polaridades
esse mecanismo desconstrutivo, perturbando até mesmo o mais caro
binarismo do campo educacional, aquele que opõe o conhecimento à
ignorância. Seguindo o pensamento de Eve Sedgwick, demonstrar, como
sugerem teóricas/os queer, que a ignorância não é "neutra", nem é um
"estado original", mas, em vez disso, que ela "é um efeito, não uma
ausência, de conhecimento".(26)Admitir que a ignorância pode ser
compreendida como sendo produzida por um tipo particular de conhecimento
ou produzida por um modo de conhecer. Assim, a ignorância da
homossexualidade poderia ser lida como sendo constitutiva de um modo
particular de conhecer a sexualidade. Deborah Britzman afirma:
O
velho dualismo binário da ignorância e do conhecimento não pode lidar
com o fato de que qualquer conhecimento já contém suas próprias
ignorâncias. Se, por exemplo, os/as jovens e os/as educadores/as são
ignorantes sobre a homossexualidade, é quase certo que eles/elas também
sabem pouco sobre a heterossexualidade. O que, pois, é exigido do
conhecedor para que compreenda a ignorância não como um acidente do
destino, mas como um resíduo do conhecimento? Em outras palavras, que
ocorrerá se lermos a ignorância sobre a homossexualidade não apenas como
efeito de não se conhecer os homossexuais ou como um outro caso de
homofobia, mas como ignorância sobre a forma como a sexualidade é
moldada?(27) (destaques meus).
A "reviravolta
epistemológica" provocada pela teoria queer transborda, pois, o terreno
da sexualidade. Ela provoca e perturba as formas convencionais de pensar
e de conhecer. A sexualidade, polimorfa e perversa, é ligada à
curiosidade e ao conhecimento. O erotismo pode ser traduzido no prazer e
na energia dirigidos a múltiplas dimensões da existência. Uma pedagogia
e um currículo conectados à teoria queer teriam de ser, portanto, tal
como ela, subversivos e provocadores. Teriam de fazer mais do que
incluir temas ou conteúdos queer; ou mais do que se preocupar em
construir um ensino para sujeitos queer. Como afirma William Pinar,(28)
"uma pedagogia queer desloca e descentra; um currículo queer é
não-canônico". As classificações são improváveis. Tal pedagogia não pode
ser reconhecida como uma pedagogia do oprimido, como libertadora ou
libertária. Ela escapa de enquadramentos. Evita operar com os dualismos,
que acabam por manter a lógica da subordinação. Contrapõe-se,
seguramente, à segregação e ao segredo experimentados pelos sujeitos
'diferentes', mas não propõe atividades para seu fortalecimento nem
prescreve ações corretivas para aqueles que os hostilizam. Antes de
pretender ter a resposta apaziguadora ou a solução que encerra os
conflitos, quer discutir (e desmantelar) a lógica que construiu esse
regime, a lógica que justifica a dissimulação, que mantém e fixa as
posições de legitimidade e ilegitimidade. "Em vez de colocar o
conhecimento (certo) como resposta ou solução, a teoria e a pedagogia
queer (...) colocam o conhecimento como uma questão interminável".(29)
Vistos
sob essa perspectiva, uma pedagogia e um currículo queer 'falam' a
todos e não se dirigem apenas àqueles ou àquelas que se reconhecem nessa
posição-de-sujeito, isto é, como sujeitos queer. Uma tal pedagogia
sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como
estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da
existência. A dúvida deixa de ser desconfortável e nociva para se tornar
estimulante e produtiva. As questões insolúveis não cessam as
discussões, mas, em vez disso, sugerem a busca de outras perspectivas,
incitam a formulação de outras perguntas, provocam o posicionamento a
partir de outro lugar. Certamente, essas estratégias também acabam por
contribuir na produção de um determinado 'tipo' de sujeito. Mas, neste
caso, longe de pretender atingir, finalmente, um modelo ideal, esse
sujeito, e essa pedagogia, assumem seu caráter intencionalmente
inconcluso e incompleto.
Efetivamente, os contornos de
uma pedagogia ou de um currículo queer não são os usuais: faltam-lhes as
proposições e os objetivos definidos, as indicações precisas do modo de
agir, as sugestões sobre as formas adequadas para 'conduzir' os/as
estudantes, a determinação do que 'transmitir'. A teoria que lhes serve
de referência é desconcertante e provocativa. Tal como os sujeitos de
que fala, a teoria queer é, ao mesmo tempo, perturbadora, estranha e
fascinante. Por tudo isso, ela parece arriscada. E talvez seja mesmo...
mas, seguramente, ela também faz pensar.
Referências bibliográficas
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atualidade. 3. ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Editora Record, 2000.
1 FOUCAULT, 1993.
2 La Gandhi Argentina, 1998.
3
Nos anos 70, o cantor Ney Matogrosso e o grupo Dzi Croquetes embaralham
propositalmente as referências femininas e masculinas em suas
performances e, segundo José Silvério Trevisan, acabam por desempenhar
um papel importante e provocador no debate sobre política sexual no
Brasil. Trevisan (2000, p. 288) afirma que os Dzi Croquetes "trouxeram
para o Brasil o que de mais contemporâneo e questionador havia no
movimento homossexual internacional, sobretudo americano".
4 SPARGO, 1999, p. 29.
5SPARGO, 1999, p. 30.
6 TREVISAN, 2000, p. 339.
7SEIDMAN, 1995, p. 121.
8 SPARGO, 1999, p. 34.
9 TREVISAN, 2000, p. 462.
10
TREVISAN, 2000, p. 463. De fato, a partir da segunda metade dos anos
80, no Brasil, passou-se a discutir muito mais a sexualidade (e a
homossexualidade) em várias instâncias sociais, inclusive nas escolas. A
preocupação em engajar-se no combate à doença fez com que organismos
oficiais, tais como o Ministério de Educação e Cultura, passassem a
estimular projetos de educação sexual e, em 1996, o MEC incluiu a
temática, como tema transversal, nos seus Parâmetros Curriculares
Nacionais (os PCNs, a nova diretriz para educação do País). Vale notar,
contudo, que as condições que possibilitaram a ampliação da discussão
sobre a sexualidade também tiveram o efeito de aproximá-la das idéias de
risco e de ameaça, colocando em segundo plano sua associação ao prazer e
à vida.
11 TREVISAN, 2000, p. 462.
12 EPSTEIN e JOHNSON, 1998, p. 37-38.
13 BUTLER, 1999.
14
Algumas vezes queer é utilizado como um termo síntese para se referir,
de forma conjunta, a gays e lésbicas. Esse uso é, no entanto, pouco
sugestivo das implicações políticas envolvidas na eleição do termo,
feita por parte do movimento homossexual, exatamente para marcar (e
distinguir) sua posição não-assimilacionista e não-normativa. Deve ser
registrado, ainda, que a preferência por queer também representa, pelo
menos na ótica de alguns, uma rejeição ao caráter médico que estaria
implícito na expressão "homossexual.
15 SEIDMAN, 1995, p. 125.
16 FOUCAULT, 1993, p. 14.
17 FOUCAULT, 1993, p. 48.
18 JOHNSON, 1981.
19 BUTLER, 1999, p. 154.
20 BUTLER, 1999.
21 SEIDMAN, 1995 , p. 126.
22 SEIDMAN, 1995 , p. 128.
23 SILVA, 2000, p. 107.
24
Eve Sedgwick afirma que "queer tem se estendido ao longo de dimensões
que não podem ser subsumidas, inteiramente, ao gênero e à sexualidade:
por exemplo, aos modos pelos quais raça, etnicidade, nacionalidade
pós-colonial entrecruzam-se com esses e com outros discursos de
constituição-de-identidade, de fratura-de-identidade" (Sedgwick apud
Jagose, 1996, p. 99).
25 TIERNEY e DILLEY, 1998 , p. 60.
26 BRITZMAN, 1996, p. 91.
27 BRITZMAN, 1996, P. 91.
28 PINAR, 1998, p. 3.
29 LUHMANN, 2000, p. 151.
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