O texto é do Bernardo Carvalho,
assim mesmo, íntimo, já que li quase tudo que ele escreveu (Nove Noites,
Aberração, Teatro, Mongólia, Os Bêbados, As Iniciais - meu favorito-).
Para quem quer se estender no assunto, há Mircea Eliade, o bruxo romeno
do pensamento religioso com O Sagrado e o Profano e Mefistófeles e o Andrógino, e tambem Francis Huxley - claro, ele é da família-, com O Sagrado e o Profano.Na verdade, há demais a ser lido, desvende.....
O
Filósofo italiano Giorgio Agamben insiste que, ao contrário do que se
costuma supor, o sentido da palavra religião não vem de religar o humano
ao divino, mas de separar as duas instâncias. A origem do termo estaria
no verbo “relegere” (reler), que indica uma atitude de observação e
respeito, de atenção e escrúpulo em relação aos rituais e às coisas
sagradas: “Não existe religião sem separação”.
Agamben
faz o elogio da profanação num livro publicado este ano na Itália e na
França: “Profanazioni” (ed. Nottetempo). Profanar é liberar das normas
sagradas o que por elas é mantido separado, restrito, intocável.
Significa neutralizar a aura, negligenciar essas normas de modo a
atribuir um novo uso (humano) ao que se mantinha interdito ao uso. O
exemplo mais contundente é o jogo: “A maior parte dos jogos que
conhecemos deriva de antigas cerimônias sagradas, de rituais e práticas
divinatórias que pertenciam em outros tempos à esfera religiosa em
sentido amplo”.
Na
verdade, o jogo não abole a esfera do sagrado, mas permite à humanidade
se liberar e desviar dela. A dimensão lúdica faz com que comportamentos
e objetos que antes tinham uma finalidade já sacralizada passem a
existir apenas para o jogo, para um uso diferente daquele que lhes era
consagrado. Como uma criança que brinca com um documento legal sem saber
do que se trata. O meio passa a ser o próprio fim, um uso sem
utilidade.
No
capitalismo, entretanto, que é a religião da modernidade, segundo
Walter Benjamin, esse profanador do jogo teria sido esvaziado. O
processo teria se invertido. O homem moderno e secular procuraria no
jogo justamente o sagrado e o ritual perdido.
Seguindo
o raciocínio de Benjamin, Agamben mostra que o capitalismo dissemina
por toda parte a separação que define a religião. É uma sociedade
secular que faz a consagração do profano. Torna o profano inatingível,
intocável, improfanável. Tudo é transformado em fetiche. É a esfera do
consumo, da exibição e do espetáculo. O capitalismo se apropria do
comportamento profanador, lúdico, para anulá-lo e transformá-lo em
fetiche de si mesmo. A pornografia é um bom exemplo: a neutralização de
uma intenção, em princípio profanadora dos comportamentos eróticos,
reduzida ao consumo solitário de uma imagem inatingível (sagrada). “A
profanação do improfanável é a tarefa política da geração por vir”,
exorta Agamben.
Há
duas semanas, numa cidade de província da França, psicologicamente
exausto depois de mais um dia numa dessas feiras de literatura em que se
reúnem centenas de escritores do mundo inteiro, tentando vender seus
livros, eu voltei ao quarto de hotel de madrugada e liguei a televisão
na esperança de assistir a alguma coisa que me tirasse dali o mais
rápido possível. Para escritores que não são exatamente populares, esses
festivais servem antes de mais nada para dar a dimensão exata da
rejeição do público. Mas, em compensação têm pelos menos uma utilidade: à
força de se falar de tudo menos de literatura, sempre em nome da
literatura, fazem sentir saudades dela.
Trocando
de canais ao acaso, entre as séries e os programas previsíveis, fui
surpreendido pela imagem de uma nudez incongruente . Logo depois de
passar por uma emissora que exibia um filme pornográfico típico, desses
que podiam muito bem ilustrar o texto de Agamben, deparei-me com uma
cena que já era estranha por si só e ficava ainda mais num canal como a
Arte, dedicado às manifestações culturais e aos documentários: vários
homens nus, comuns, de meia-idade, velhos, gordos ou esqueléticos,
muitos deles repugnantes, vagavam, se esfregavam e se ensaboavam, em
meio ao vapor e a bacias de água, por salas caindo aos pedaços, com
paredes cobertas de azulejos tão amarelados e usados quanto os próprios
corpos.
Era
um labirinto povoado eventualmente por corpos que passavam e faziam a
sua higiene pessoal, indiferentes uns aos outros e à câmera, na mais
completa intimidade, sozinhos ou em duplas, uns esfregando os outros, às
vezes pais e filhos pequenos, velhos com poucos anos de vida pela
frente etc., sem nunca dizerem nada uns aos outros. Ao contrário dos
corpos assépticos do filme pornográfico do outro canal, estes
permaneciam demasiado humanos, por mais que se esfregassem.
Para
completar o aspecto inesperado das imagens, não faltava lugar para um
desejo embutido no que parecia repugnante. Era difícil trocar de canal. A
certa altura, uma seqüência de corpos jovens e musculosos, caminhando
em círculos, como uma coreografia, introduzia um contraponto à
decrepitude geral, remetendo a um momento anterior na vida desses corpos
usados. O cuidado e a preocupação de todos consigo mesmos revelava uma
dimensão misteriosa do desejo, em que saltava aos olhos a consciência
silenciosa da própria finitude.
Só
alguns dias depois, fui descobrir, numa revista, que o filme se chamava
“Les Bains” (os banhos) e que seu diretor, o francês David Teboul, o
tinha rodado em alguma parte da Rússia, com gente anônima. O artigo
atribuía ao filme o “caráter sagrado de uma cerimônia pagã”. Achei
graça. Pensei no elogio que Agamben faz da profanação. Em “Les Bains”,
o desejo está fora do lugar. É um desejo ao mesmo tempo reflexivo e
enigmático, porque encontrou um novo uso para os comportamentos
eróticos, restituindo a “capacidade humana de profaná-los, desligando-os
da sua finalidade imediata”.
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