sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Alimentar o amor...

Alimentar o Amor

Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Chega-se sempre à primeira frase, ao primeiro número da revista, ao primeiro mês de amor. Cada começo é uma mudança e o coração humano vicia-se em mudar. Vicia-se na novidade do arranque, do início, da inauguração, da primeira linha na página branca, da luz e do barulho das portas a abrir.
Começar é fácil. Acabar é mais fácil ainda. Por isso respeito cada vez menos estas actividades. Aprendi que o mais natural é criar e o mais difícil de tudo é continuar. A actividade que eu mais amo e respeito é a actividade de manter.
Em Portugal quase tudo se resume a começos e a encerramentos. Arranca-se com qualquer coisa, de qualquer maneira, com todo o aparato. À mínima comichão aparece uma «iniciativa», que depois não tem prosseguimento ou perseverança e cai no esquecimento. Nem damos pela morte.
É por isso que eu hoje respeito mais os continuadores que os criadores. Criadores não nos faltam. Chefes não nos faltam. Faltam-nos continuadores. Faltam-nos tenentes. Heróis não nos faltam. Faltam-nos guardiões.

É como no amor. A manutenção do amor exige um cuidado maior. Qualquer palerma se apaixona, mas é preciso paciência para fazer perdurar uma paixão. O esforço de fazer continuar no tempo coisas que se julgam boas — sejam amores ou tradições, monumentos ou amizades — é o que distingue os seres humanos. O nascimento e a morte não têm valor — são os fados da animalidade. Procriar é bestial. O que é lindo é educar.

Estou um pouco farto de revolucionários. Sei do que falo porque eu próprio sou revolucionário. Como toda a gente. Mudo quando posso e, apesar dos meus princípios, não suporto a autoridade.

É tão fácil ser rebelde. Pica tão bem ser irreverente. Criar é tão giro. As pessoas adoram um gozão, um malcriado, um aventureiro. É o que eu sou. Estas crónicas provam-no. Mas queria que mostrassem também que não é isso que eu prezo e que não é só isso que eu sou.

Se eu fosse forte, seria um verdadeiro conservador. Mudar é um instinto animal. Conservar, porque vai contra a natureza, é que é humano. Gosto mais de quem desenterra do que de quem planta. Gosto mais do arqueólogo do que do arquitecto. Gosto de académicos, de coleccionadores, de bibliotecários, de antologistas, de jardineiros.

Percebo hoje a razão por que Auden disse que qualquer casamento duradoiro é mais apaixonante do que a mais acesa das paixões. Guardar é um trabalho custoso. As coisas têm uma tendência horrível para morrer. Salvá-las desse destino é a coisa mais bonita que se pode fazer. Haverá verbo mais bonito do que «salvaguardar»? É fácil uma pessoa bater com a porta, zangar-se e ir embora. O que é difícil é ficar. Isto ensinou-me o amor da minha vida, rapariga de esquerda, a mim, rapaz conservador. É por esta e por outras que eu lhe dedico este livro, que escrevi à sombra dela.

Preservar é defender a alma do ataque da matéria e da animalidade. Deixadas sozinhas, as coisas amarelecem, apodrecem e morrem. Não há nada mais fácil do que esquecer o que já não existe. Começar do zero, ao contrário do que sempre pretenderam todos os revolucionários do mundo, é gratuito. Faz com que não seja preciso estudar, aprender, respeitar, absorver, continuar. Criar é fácil. As obras de arte criam-se como as galinhas. O difícil é continuar.

Miguel Esteves Cardoso, in 'As Minhas Aventuras na República Portuguesa'

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Não custa perguntar...ou procurar



É um horror e nos faz pensar na involução do ser humano!Fazer o que fizeram com o pobre coitado, ainda que marginal, no Rio de Janeiro, é um atestado de barbárie, um brevê de insensatez coletiva que nos mostra que não há mais remédio: somos um país, uma nação condenada a não dar certo, a ciclos esparsos de evolução econômica, mas só!

A atitude dos boçais, embora a inércia e desídia do poder público possa nos levar a pensar que é isto mesmo que tem de acontecer, já que o poder  constituído não toma as providências mais comezinhas para evitar a escalada da violência que a tão prometida bonanza carioca, que não chega para todos, provoca nos excluídos de suas promessas e (poucas, pouquíssimas) realizações, a atitude dos boçais é imperdoável, deve ser punida com rigor e prevenida com trabalho de inteligência da polícia! Ou alguém duvida de que vai se repetir? A educação e a consciência social servem exatamente como freios para pensamentos como este, de vingança e "justiça pelas próprias mãos". A se levar a termo a lei de Talião (olho por olho, ...) acabaremos todos cegos e banguelas!!


Tão ou mais chocante que a atitude da turma é a reação dos protestadores de plantão, dos revoltados de butique, dos encastelados em palacetes e latifúndios verticais, de onde atiram pérolas de ignorância ilustradas, sabendo que os porcos que as receberão não saberão reconhecer seu significado:  usam o termo fascista como expletivo, como se fosse um "filho da puta" pueril, tirando da palavra seu significado precípuo e utilizando-a como um palavrão refinado, algo de que a plebe ignara não consegue alcançar o significado em sua plenitude. Não percebem, filhos da PUC, que é um problema a mais, essa demonstração pública de ignorância e má fé?

"Ontem, hoje, amanhã, para honra da Itália"
Vou tentar ajudar, já que a palavra vem sendo usada a torto e a direito, com tal ignorância e óbvio sectarismo (se não concorda comigo, é fascista!...um horror!), que é preciso dar uma ajudazinha: fascista vem de fascismo, um regime político autoritário, que proclama a autossuficiência do Estado sobre o cidadão, sendo que as razões do Estado se sobrepõem ao direito e à moral.

Historicamente, o fascismo tem seu poder fundamentado em organizações sociais e da classe operária, unidos para se contrapor ao poder do grande capital e do sindicalismo autoritário.

A acepção moderna, ou contemporânea, da palavra se refere a alguém "radical, forte e intransigente", embora tenha sido apropriada pela esquerda (quando ela fazia sentido) para designar qualquer pensamento de direita. Uma manipulaçãozinha não faz mal a ninguém, não é?  Está tocando algum sininho aí ou a ignorância criou uma pátina impenetrável à razão e aos argumentos razoáveis?



Para ajudar mais um pouco, citando Meis: "O fascismo é o sistema de governo que carteliza o setor privado, planeja centralizadamente a economia subsidiando grandes empresários com boas conexões políticas, exalta o poder estatal como sendo a fonte de toda a ordem, nega direitos e liberdades fundamentais aos indivíduos e torna o poder executivo o senhor irrestrito da sociedade.". Lembra a vocês de alguém ou algum lugar ao sul do equador?

E não envolvam racismo neste caso. Calhou de ser preto, o pobre! O racismo, se houve, foi anterior aos roubos que ele praticou, foi anterior ao seu nascimento, foi anterior a sua não ida a uma escola, foi anterior à falta de construção de uma perspectiva possível de vida para ele. O racismo contra o cidadão possível, foi o que sofreu a triste criatura.



 A ideia não é polemizar, não é dizer que alguém está certo ou errado, é só dar uma ajudinha para que a ignorância não triunfe tão facilmente, já que não tenho a menor dúvida de que ela triunfará. Então, quando alguém defende uma ideia diferente da sua não está sendo fascista, está defendendo uma ideia diferente da sua. Quando alguém acha que o seu programa para combate a pobreza não é a melhor ideia do mundo, é isto só, não está sendo fascista e muito menos nazista (são coisas iguais, embora diferentes, sabiam? A diferença é um detalhe...o bode expiatório!). Apenas se acredita que há melhores formas.

Papel, como sempre, continua aceitando qualquer porcaria, inclusive as minhas! Mas não custa nada dar uma lida com atenção e pensar sobre os fatos, para que não se pareça ignorante e manipulado, mas apenas alguém que pensa diferente.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Gratidão e Paciência

Não conhecia Carmen Bernos de Gasztold, parece nome de uma baronesa que tinha uma boutique em Cap D"Antibes e ficou pobrezinha, em um castelo na Baviera...mas vai saber...Googlem aí!

Os dois poemas abaixa foram retirados do volume Poesia Traduzida, da Cosac Naif, que traz trabalhos de Carlos Drumond de Andrade. Eu teria, se fosse vocês!Variedade e beleza, não tem escapatória, você vai se apaixonar.

Vamos lá:

Carmen Bernos de Gasztold

Prière du papillon

Seigneur!
Oú en étais-je?
Ah! Oui, cette fleur, ce soleil,
merci! Votre création est belle!!
Ce parfum de rose...
Oú en étais-je?
Une goutte de rosée
roule des feux de joie au coeur d'un lis.
Je devais aller...
Je ne sais plus!
Le vent a peint ses fantasies
sur mes ailes.
Des fantasies...
Oú en étais-je?
Ah! Oui, Seigneur,
J'avais quelque chose a Vous dire:
ainsi soit-il!

Contra as políticas da página, segue a tradução. O motivo? Foi feita por Carlos Drumond de Andrade, e foi retirada do volume ótimo da Cosac Naif, "Poesia Traduzida", absolutamente luxuoso.

Oração da Borboleta

Senhor!
(Em que ponto eu estava?)
Ah!Sim, este sol, esta flor...)
Sua criação é uma beleza.
E este perfume de rosa!
(Mas onde é mesmo que eu estava?)
A gota do orvalho
acende fogueiras no coração do lírio.
Eu precisa ir...
Nem sei mais!
O vento pintou suas fantasias
em minhas asas. Fantasias...
Em que ponto eu estava?
Ah!É verdade, Senhor,
eu tinha uma coisa para lhe dizer:
Amém.

Gratidão não é linda? Sejamos gratos...


e tem também a Oração do Boi:

Priére du Boeuf

Mon dieu, donnez-moi du temps.
Les hommes sont toujours pressés!
Faites-leur comprendre que je ne peux
pas aller vite.
Donnez-moi le temps de manger.
Donnez-moi le temps de marcher.
Donnez-moi le temps de dormir.
Donnez-moi le temps de penser.

    Ainsi soit-il!

nem precisa, né, mas segue a tradução:

Oração do boi

Me dê tempo, meu deus,
os homens são tão afobados.
Faça com que eles compreendam: eu não posso
andar depressa.
Me dê tempo de comer.
Me dê tempo de caminhar.
Me dê tempo de dormir.
Me dê tempo de pensar.
 Amém!

Gratidão e paciência, e o mundo melhora muito!!