sexta-feira, 24 de outubro de 2008

Eucanaã Ferraz

A COSTUREIRA
Para Danielle Jensen

Ouve o tecido, pousa
o ouvido, ouve com os olhos.
À fibra e ao feixe interroga

sobre o que se entrelaçara,
distinguindo a linha, o intervalo,
o vão, o entreato, atenta

para o que na fala geométrica
e repetida dos fios é um outro
vazio: o de antes da trama, ato

anterior ao enredo; óculos
postos para a escuta, a escuta
desfia-se no vento, o olho

flutua, folha, flor, agulha;
fecha os olhos; ouve
com as pontas dos dedos;

indaga do tecido o modo,
os limites, a função, a oficina,
a forma que ele quer ter,

a coisa, a casa que ele quer ser; e
costura como quem à mão e
à máquina descosturasse

o dicionário,
rasgando em moles móbiles
seus hábitos, o vinco de sua farda.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

John Donne




A Assírio & Alvim de Portugal tem edições superlegais(olha a reforma aí, gente!), quase sempre em edição bilíngue. Em Lisboa, encontrei esta edição de Elegias Amorosas, de J Donne, com tradução de Helena Barbas. A elegia que segue é a Outonal. Vai no original, a tradução, só a pedidos.

Elegy IX - The Autumnal

No Spring not Summer beauty has such grace
As I have seen in one Autumnal face.
Young beauties force our love, and that's a rape
This doth but counsel, yet you cannot scape.

If it were a shame to love, here it were no shame;
Affection here takes reverence name.
Were her first years the Golden Age? That's true,
but now she's gold often tried and ever new.
That was here torrid and inflaming time,
this is her tolerable tropic clime.

Fair eyes, who asks more heat than comes from hence,
he in a fever wishes pestilence.
Call not these wrinkles, graves; it graves they were,
they were Love's graves, for else he is no where.

Yet lies not love dead here, but here doth sit
vowed to this trench, like an anachorit;
and here till hers, which must be his death, come,
he doth not dig a grave, but built a tomb.
Here dwells he, though he sojourn everywhere
in Progress, yet his standing house is here.
Here, where still evening is, not noon nor night,
where no voluptuousness, yet all delight.
In all her words, unto all hearers fit,
you may at Revels, you at Council, sit.

This is Love's limbner, youth his underwood;
There he,as wine in June, enrages blood,
which then comes seasonbliest, when our taste
and appetite to other things, is past.
Xerxe's strange Lydian love, the Platan tree,
was loved for age, none being so large as she,
or else because, being young, nature did bless
her youth with age's glory, Barrenness.
If we love things long sought, Age is a thing
which we are fifty years in compassing.
If transitory things, which soon decay,
Age must be loveliest at the latest day.
But name nor Winter faces, whose skin's slack,
lank as an unthrift's purse; but a soul's sack;
whose Eyes seek light within, for all here's shade;
whose mouths are holes, rather worn out than made;
whose every tooth to a several place is gone,
to vex their souls at Resurrection;
Name not these living Death's-heads unto me,
for these, not ancient, but antique be.

I hate extremes; yet I had rather stay
with tombs, than cradles, to wear out a day.
Since such love's natural lation is, may still
my love descend, and journey down the hill,
not panting after growing beauties, so,
I shall ebb on with them who homeward go.

segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Adelaide do Julinho

POEMAS


consciência
ecológica


impossível fechar as pernas
e matar a borboleta que
voa voa voa entre elas



floral


um antúrio muito rijo pedindo
abrigo em um vaso úmido:
tempo de poda.



aurora


de quatro
papaimamãe
chupeta

oh! que saudades que tenho
da minha infância querida



mais em bashô

o sapo salta
perereca bate palmas
aguaçal na mata



hipnose

é sempre assim:
ele põe o pinto pra fora
eu fico fora de mim



em riste

para jão filho

a sua cabeça dura:
valente-inclemente-entremetente:
só pode com ela o meu hímen complacente

Faz parte do grupo Escritoras Suicidas. Um tantico over, mas acho legal. Morno não rola.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Micheliny Verunschk

Ah! Essa gente nova, cultivada...jardineiras de belezas...

(do livro inédito A Cartografia da Noite)



Tróia

Toda saudade
repousa nas palavras,
tem cheiro de pinho
e ossos muito brancos.
Toda saudade:
velas arreadas
dos mastros dos batéis,
última visão da chama apagando,
canção de helenas nuas
perdida nos lábios de Ílion.
Em tudo,
o teu nome de pedra,
Saudade,
cadela morta.



A Barata

A barata
tensa
atônita
atenta
frente a folha
pegajosa do poema.
Um calafrio quase
na carapaça dura
e o poema agridoce
acenando
acendendo
dentro da madrugada escura.

O dia nasce
parindo um novo solstício
e ela, impressa,
presa no poema-suícidio.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Sándor Márai



Depois da viagem a Buda e Peste, fico imaginando como não seria ler no original os livros de Sándor Márai. Li e guardei O legado de Ezster, de 2001, e estou lendo Brasas. Lá, pode-se ler, entre outras maravilhas: "Naquela relação, cheia de ternura, seriedade e dedicação, havia alguma coisa de fatal, de tão luminoso a ponto de desencorajar qualquer sarcasmo. Relações deste tipo provocam um sentimento de inveja em todas as comunidades humana. Não há nada que os homens desejem tão ardentemente como uma amizade desinteressada. Mas é um desejo sem esperança."



E a definição de muita gente que transita por aí:"...irradiava um calor semelhante à bondade das pessoas gordas e indolentes que procuram atenuar seu egoísmo com alguma boa ação pouco trabalhosa."

Recomendo, muito, muitíssimo....Obrigado, Mariette!!!

Merenda



A merenda aquecia ao sol da tarde.
Cheiro de rosca,
doce de abacaxi,
goiabada em tabuleiros de madeira.
“Vezinho, vem lanchar!”
E eu ia...
como ainda vou,
atrás de qualquer carinho.

terça-feira, 14 de outubro de 2008

Bruna Berber

É uma ofensa, com 23 anos escrever desta fora. Calma, seu livro "A fila sem fim dos demônios descontentes" (7 Letras) está esgotadíssimo, mas o próximo "Balés" está para sair, dizem. Esperar é torturar seus desejos...


anéis

quero alegria pro poema
mas os versos saem em mi

tento decorar as penas
estão desbotadas

todas as cores
vejo em preto e branco

canto para esquecer
a grande confusão das coisas simples

não sei de que material seco são feitas
as perdas.


broches


aproxima-se o desconhecido
e junto dele a gritaria
dos grandes começos

ainda não sabe dizer
com quantas rouquidões
se faz um recuo

por isso o silêncio e a tosse
infalível técnica
de disfarces.


brincos

o medo amarela
os dentes corrói
todas as tentativas
de nomeá-lo

nada nos assegura
nem ninguém poderá
nos defender: estamos vivos

e se do paraíso estamos longe
cada vez mais longe quero viver
distante, muito distante
do que só é possível no papel.

Marília Garcia

20 poemas para o seu walkman (este artigo definido aí...)me acompanhou por semanas, indo e vindo para o trabalho, passeios... Na verdade, era meu walkman...Música para os ouvidos.Lá, pode-se ler:

Le pays n'est pas la carte,


pensa bem, mas
se tivesse as ruas quadradas
teria ido a outro café, teria dito tudo de
outro modo e visto de
cima a ccidade em vez de se
perder toda vez
na saída do metrô, não é desagradável
estar aqui, é apenas
demasiado real diz com os cílios erguidos
procurando um mapa

II
não é o avião rasante sobre
a água e nem o corpo
na janela semi-aberta
vendo o desenho
dos carros embaixo - não comenta nada
porque prefere armar planos
em silêncio
(estaria sonhando
com colinas?)

III
de lá manda longas
cartas descrevendo o país,
os terremotos e a forma da cidade.
pode me dizer que nunca se
espanta mas não percebe que
caminha perguntando:
é de plástico a cabine? é sua voz
na gravação? é um navio no
horizonte? pode ser apenas
uma margem de erro mas
não pensa nisso
com freqüência

(pode ser apenas a janela
aberta que carrega os papéis)

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Mônica de Aquino



Ser mínima.

Cortar cabelo
unha pele
mas sem o cálculo da cutícula.

Despir-me de tudo
o que não dói.

Ultrapassar toda a carne
e roer osso –
canina –
roer o rabo.

Roer, ainda,
os próprios dentes
agudos
rentes

sábado, 11 de outubro de 2008

AH!A Liberdade...

Freedom


he drank wine all night of the
28th, and he kept thinking of her:
the way she walked and talked and loved
the way she told him things that seemed true
but were not, and he knew the color of each
of her dresses
and her shoes-he knew the stock and curve of
each heel
as well as the leg shaped by it.

and she was out again and when he came home,and
she'd come back with that special stink again,
and she did
she came in at 3 a.m in the morning
filthy like a dung eating swine
and
he took out a butchers knife
and she screamed
backing into the rooming house wall
still pretty somehow
in spite of love's reek
and he finished the glass of wine.

that yellow dress
his favorite
and she screamed again.

and he took up the knife
and unhooked his belt
and tore away the cloth before her
and cut off his balls.

and carried them in his hands
like apricots
and flushed them down the
toilet bowl
and she kept screaming
as the room became red

GOD O GOD!
WHAT HAVE YOU DONE?

and he sat there holding 3 towels
between his legs
no caring now whether she left or
stayed
wore yellow or green or
anything at all.


and one hand holding and one hand
lifting he poured
another wine

Charles Bukowski

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Sophia Breyner

Paixão é assim, precisamos cada vez mais do mesmo,para que continue sendo diferente....

No quarto

No quarto roemos o sabor da fome
A nossa imaginação divaga entre paredes brancas
Abertas como grandes páginas lisas
O nosso pensamento erra sem descanso pelos mapas
A nossa vida é como um vestido que não cresceu conosco

AH! Sofia!!!

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Gabeira




Pode ser desperdício, mas meu voto é dele. Mais não fosse, a foto do Globo me convenceu que é preciso mudar, tudo (ou quase) o que for possível. A começar por nõs mesmos.... coragem!!!

A foto acima mudou cabeças, abriu olhos e, como disse o Pablo: "nela´(tanga) não cabem dólares". É isto, precisamos de alguém desnudo, sem bolsos de mágico ou de ladrão!!!

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

Kazantzakis




Considerado o maior romancista grego do século XX, era também poeta, dramaturgo e tradutor. Seu livro ASCESE- Os Salvadores de Deus tem uma edição da Atica em tradução do José Paulo Paes que precisa ser relançada.

Lá, pode-se ler:

"...Tudo quanto vejo, sinto, provo, cheiro e toco são invenções de minha mente.
O sol nasce e se põe dentro do meu crânio. Numa de minhas têmporas, desponta, na outra se deita.
...
"Só eu existo,!" grita a Mente. Nos meus subterrâneos cinco tecelões tecem e destecem o tempo e o espaço, a alegria e o pesar, a matéria e o espírito.
Tudo flui à minha volta como um rio; tudo dança e gira; os rostos rolam como água, estruge o caos.
Sou o artífice do abismo. Sou o espectdor dele. Sou a teoria e a prática. A lei. Fora de mim, não existe nada."

(Foto: Trabalho de Fabienne Verdier)

terça-feira, 7 de outubro de 2008

Hotel Particulier


A "The Pocket Poets Series" da City Lights Books de São Francisco tem edições ótimas de poetas idem. Este poema é de Frank O'Hara, nova-iorquino, chamado de "poeta pintor", e foi retirado do volume 19 da coleção. A menção ao Brasil é insondável...

Hotel Particulier

How exciting it is
not to be at Port Lligat

or learning Portuguese in Bilbao so you can go to Brazil.
Erik Satie made a great mistake learning Latin

The Brise Marine wasn't written in Sanskrit, baby

I had a teacher one whole summer who never told me
anything and it was wonderful

and then there is the Bibliotéque Nationale, cuspidors, glasses, anxiety
you don't get crabs that way,
and what you don't know will hurt somebody else

how clear the air is, how low the moon, how flat the sun, et cetera
just so you don't coin a phrase that changes can be "rung" on

like the neiges d'antan
and that sort of thing (oops!) , (roll me over)!

ist his the hostel where the lazy and fun-loving
start up the mountain?

(1960)

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Antonio Cícero




L'avenir

Soulevons la paille
regardons la neige
écrivons des lettres
attendons des ordres

Fumons la pipe
en songeant à l'amour
les gabions sont là
regardons la rose

La fontaine n'a pas tari
pas plus que l'or de la paille ne s'est terni
regardons l'abeille
et ne songeons pas à l'avenir

Regardons nos mains
qui sont la neige
la rose et l'abeille
ainsi que l'avenir

O futuro

Levantar a palha
contemplar a neve
escrever as cartas
aguardar as ordens

Fumar o cachimbo
sonhar com o amor
eis aí os cestões
contemplar a rosa

A fonte não secou
e o ouro da palha não desbotou
olhar a abelha
e nem pensar no futuro

Olhar nossas mãos
que são a neve
a rosa e a abelha
além do futuro

Retirado do blog do Antonio Cícero, em 30/09/08.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Palavras...




Quantas palavras já não foram escritas para definir o que acontece nesta foto?

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Volta

Após mais de um mês sabático (leia-se falta de paciência), volto a escrever aqui. Pretendo alguma mudança de estilo, aproach, sei lá...vamos ver.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Novos Tempos



Exílio

Quando a pátria que temos não a temos
Perdida por silêncio e por renúncia
Até a voz do mar se torna exílio
E a luz que nos rodeia é como grades.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, 26 de agosto de 2008

Grãos de Areia

Flaubert escreveu em 1857 uma cartinha para MMle de Chantepie,onde se pode ler:
"As pessoas ligeiras, superficiais, os espíritos presunçosos e entusiastas
querem uma conclusão em todas as coisas; eles buscam a finalidade da
vida e a dimensão do infinito. Eles tomam na mão, na sua pobre
mãozinha, um punhadode areia e dizem ao oceano: "Eu vou contar os grãos
das tuas margens!" Mas, como os grãos lhes correm por entre os dedos,
ai, e como o cálculo é longo, eles batem com o pé no chão e choram.
Você sabe o que há para fazer na margem do oceano? Ajoelhar-se ou
passear!!! Passeie!!"

Não, não é para tirar nenhum conclusão em relação aos oceanos que ora atravessamos, é apenas para achar lindo e do cacete!!!

En français:

"Les gens légers, bornés, les esprits présomptueux et enthousiastes
veulent en toute chose une conclusion ; ils cherchent le but de la vie
et la dimension de l'infini. Ils prennent dans leur pauvre petite main
une poignée de sable et ils disent à l'Océan : "Je vais compter les
grains de tes rivages." Mais comme les grains leur coulent entre les
doigts et que le calcul est long, ils trépignent et ils pleurent.
Savez-vous ce qu'il faut faire sur la grève ? Il faut s'agenouiller ou
se promener. Promenez-vous."

Você tem passeado? Seus joelhos estão esfolados?

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Bukowski

The Genius of the Crowd

There is enough treachery, hatred,
violence,
Absurdity in the average human
being
To supply any given army on any given day.
AND The Best At Murder Are Those
Who Preach Against It.
AND The Best At Hate Are Those
Who Preach LOVE
AND THE BEST AT WAR--FINALLY--ARE THOSE WHO
PREACH
PEACE
Those Who Preach GOD
NEED God
Those Who Preach PEACE
Do Not Have Peace.
THOSE WHO PREACH LOVE
DO NOT HAVE LOVE
BEWARE THE PREACHERS
Beware The Knowers.
Beware
Those Who
Are ALWAYS
READING
BOOKS
Beware Those Who Either Detest
Poverty Or Are Proud Of It
BEWARE Those Quick To Praise
For They Need PRAISE In Return

BEWARE Those Quick To Censure:
They Are Afraid Of What They Do
Not Know

Beware Those Who Seek Constant
Crowds;
They Are Nothing
Alone
Beware
The Average Man
The Average Woman
BEWARE Their Love

Their Love Is Average, Seeks
Average
But There Is Genius In Their Hatred
There Is Enough Genius In Their
Hatred To Kill You, To Kill
Anybody.

Not Waiting Solitude
Not Understanding Solitude
They Will Attempt To Destroy
AnythingThat Differs
From Their Own

Not Being Able
To Create Art
They Will Not
Understand Art

They Will Consider Their Failure
As Creators
Only As A Failure
Of The World

Not Being Able To Love Fully
They Will BELIEVE Your Love
Incomplete
AND THEN THEY WILL HATE
YOU

And Their Hatred Will Be Perfect
Like A Shining Diamond
Like A Knife
Like A MountainL
IKE A TIGER
LIKE Hemlock
Their Finest
ART

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Valerio Magrelli (2)

Mas deve existir uma estrada interna,
uma espécie de atalho
entre a cabeça e as pernas
que atravesse braços, barriga
e aquilo que Homero chama
no livro dezoito as vergonhas.
Uma trilha distante
imersa dentro do corpo,
uma veia que passou despercebida
ou um rio navegável,
uma rede viária
ou um subterrâneo. Uma idéia
encostada como um guarda-chuva
e depois esquecida.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Valerio Magrelli

A pena não deveria abandonar mais
a mão que escreve.
Já virou osso, dedo.
Como um dedo arranha, prende e mostra.
É um galho do pensamento
e dá seus frutos:
propõe abrigo e sombra.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A poesia moderna portuguesa

Reproduzo abaixo artigo escrito pelo poeta Cláudio Willer sobre a moderna poesia portuguesa, publicado na revista Agulha. Não pedi licença nem autorização, qualquer problema de direito autoral, postar comentário que retiro o artigo.
---
HERBERTO HELDER E A GRANDE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
Claudio Willer


Pode-se falar em relação insular, marcada por um considerável desconhecimento mútuo, entre as literaturas do Brasil e Portugal de hoje, mesmo ressalvando a existência de especialistas, iniciados e outras modalidades de bons leitores. Importantes contemporâneos brasileiros circulam mais em Paris do que em Lisboa; reciprocamente, grandes nomes da literatura portuguesa também são mais conhecidos em países europeus do que no Brasil. Não nos pensamos, essa é a verdade, como integrantes de uma comunidade lingüística de brasileiros, portugueses, africanos lusófonos e demais integrantes da mesma diáspora. Isolamo-nos de modo provinciano, ao contrário dos que usam a língua castelhana. Entre estes, conforme já apontei (a propósito de Octavio Paz em Agulha # 8, e com ênfase no ensaio Nossa língua, nossa literatura, disponível no Jornal de Poesia), combinam-se de modo dinâmico o particular e o universal, o regional e o cosmopolita, através de escritores com uma identidade assumida e declarada, ao mesmo tempo participantes de uma comunidade lingüística maior. Uma das conseqüências é o mercado forte de livros e outros bens culturais, que amplia a repercussão de autores de língua espanhola (sem necessariamente chegarem ao Brasil, à exceção dos monstros sagrados de praxe, acolhidos antes pela crítica européia, bastando verificar a quantidade de ibero-americanos importantes aos quais o acesso continua sendo através de matérias veiculadas em Agulha e na correlata Banda Hispânica).

É certo que, na última década, registrou-se crescimento do interesse brasileiro pela literatura de Portugal. Seu principal indício é o prestigio de José Saramago, o qual, ao tomar a si a defesa da lusofonia, tornou-se seu mais qualificado porta-voz. Com menor repercussão, houve lançamentos importantes de Lobo Antunes, Cardoso Pires, Filomena Cabral. Assim, algo da prosa portuguesa da segunda metade do século XX pode ser encontrado em nossas livrarias (além da boa distribuição das edições portuguesas, sendo necessário, porém, que alguém explique a razão do preço grandiloqüente dos livros vindos de Portugal). Ainda estão ausentes outros bons nomes - Vergílio Ferreira, Alçada Batista, etc. Mas é na poesia que há uma lacuna a ser coberta, equivalente ao intervalo entre a geração para a qual a leitura de Fernando Pessoa revelou novas dimensões da criação, e aquela dos poetas publicados dos anos 40/50 até hoje (mas, mesmo em matéria de modernismo português, falta algo, cabendo lembrar, a propósito, o artigo de Sérgio Lima, Almada Negreiros: o desígnio do claro, em Agulha # 2-3).

Um passo importantíssimo para vencer esse fosso é, não só a publicação, mas a boa repercussão da coletânea brasileira de Herberto Helder, O corpo o luxo a obra (seleção e apresentação de Jorge Henrique Bastos, posfácio de Maria Lúcia Dal Farra, Editora Iluminuras, 2.000). Trata-se de leitura mais que necessária: é indispensável, permitindo que nossa atualização em poesia portuguesa contemporânea comece pelo melhor, pelo que há de mais expressivo e substancioso.

Foi bem assinalado, em matérias já publicadas, que Herberto Helder é um representante - talvez, hoje, o maior deles - da linhagem de poetas visionários, sistematicamente desregrados, inaugurada pelo Rimbaud de Iluminações e Uma Temporada no Inferno. Cabe invocar, em acréscimo, a idéia de imagem, tal como formulada por Pierre Reverdy, que desse modo conferiu o estatuto de uma poética às operações sobre a linguagem de Rimbaud - e de Lautréamont, Laforgue, Corbiére, Germain Nouveau, Jarry, dos que podem ser associados à vertente radicalmente inovadora do Simbolismo. Para Reverdy, a imagem poética se dá através da aproximação de realidades diferentes; e será tanto mais forte quanto mais distantes forem essas realidades assim aproximadas. No autor de Sources du Vent, tais idéias se realizam nos poemas em prosa e em versos longos e livres, através de símiles, mais que metáforas, onde o abajur do poente atenua meu delírio, e o ouro do sonho desperta quem dorme. Aproximações de realidades distintas constituem o veio central da obra de Breton, Eluard, Péret, dos demais poetas associados ao Surrealismo, bem como dos que se afastaram desse movimento e integram igualmente o melhor da lírica francesa do século XX, como Desnos, Prévert e Char. São centrais, também, na poesia de língua espanhola, tendo seu ponto máximo no Poeta em Nova York de Lorca, estando presentes, ainda, no jovem Neruda e no jovem Alberti, além de tantos ibero-americanos que se vincularam mais ou menos expressamente ao Surrealismo.

Em Portugal, por sua vez, a poesia de imagens surge como explosão, rebelião manifesta, entre 1945 e 50, através dos seus surrealistas: Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill, Mario-Henriqe Leiria, entre outros. Inicialmente manifestação à margem, constitui-se em tônica dominante. Por isso, a riqueza imagética contribui decisivamente para que a literatura portuguesa mereça especial atenção, oferecendo um interessante contraste com a produção brasilera contemporânea, mais cerebral e regrada em seus autores de maior prestígio.

Nesse contexto - e é importante grifar o contexto, o fato de nos referirmos a um poeta situado em um ambiente de grande poesia -, essa linhagem, iniciada por Rimbaud e Lautréamont, formulada por Reverdy e Breton, encontra em Herberto Helder seu ponto culminante, desde o antológico O Amor em Visita de 1958, com seu lirismo exacerbado: Dá-me uma mulher jovem com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue, seguindo-se outras criações espantosas: Em cada mulher existe uma morte silenciosa; ou Ver no aro de fogo de uma entrega/ tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus/ será criar-te para luz dos meus pulsos e instante/ do meu perpétuo instante. Ao longo deste O corpo o luxo a obra, prossegue o desfile de imagens fulgurantes: São claras as crianças como candeias sem vento,/ seu coração quebra o mundo cegamente. Ou: Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira/ e a eternidade das mãos. Ou então: A solidão de uma palavra. Uma colina quando a espuma/ salta contra o mês de maio/ escrito.

Imagens: é isto o que o leitor de O corpo o luxo a obra irá encontrar em suas 160 páginas: Olho a brancura espasmódica,/ a queimadura central/ dessa imagem. E nas centenas de páginas da edição portuguesa de Poesia Toda, pela Assírio & Alvim. Contudo, já em 1963 Helder dava uma espécie de salto, promovia algo como a sublimação do sublime, a imagética da imagem, em A Máquina Lírica. Nos poemas A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe - e, principalmente, em Joelhos, salsa, lábios, mapa, grupos de palavras, sem nexos sintáticos, a exemplo de Engenheiro, letra, grito, aspas, são repetidas como refrão, entremeadas de frases quebradas, inconclusas: A terra irada escrevia seu livro raso./ Enquanto por baixo as letras dos peixes/ fazendo som. A referência, o vínculo com o sentido exterior ao texto, o "real", "objetivo", são abolidos de vez; contudo, a estrutura do poema permanece em pé, incólume

Para se entender melhor o que Helder faz, cabe o paralelo com artes plásticas, imaginando-se uma colagem, uma sobreposição de imagens visuais, a partir da qual o artista fizesse uma nova colagem e restruturasse o já restruturado. Isso sim, é "poesia de poesia", expressão usada às vezes em favor do experimentalismo árido, da metalinguagem excessivamente cerebral, e que cabe com propriedade às desconstruções-reconstruções das quais um exemplo expressivo é Joelhos, salsa, lábios, mapa, mas que não param por aí, prosseguindo nos enigmas da série Antropofagias, de 1971, e nas descontinuidades e quebras de sintaxe de A cabeça entre as mãos, de 1981.

Convém lembrar, avançando na interpretação do empreendimento poético de Helder, o ensaio clássico de Edmund Wilson sobre Rimbaud e o Simbolismo, em O Castelo de Axel. Nele, o grande crítico demonstra que é característica daquele movimento, associada ao suposto decadentismo do Villiers de L’Isle Adam de Axel, a afirmação da palavra como mundo autônomo, a par da recusa da realidade, tal como dada em nossa sociedade. Pois bem: na obra de Herberto Helder, o movimento de afirmação da palavra, da linguagem pura, como ele diz, e, dialeticamente, da negação do mundo, entenda-se da sociedade burguesa, atingem o grau máximo de consistência; correlatamente, de beleza, de autêntico esplendor poético.

Em muitos, o inconformismo e conseqüente capacidade de inovar acabam arrefecendo, e o solapamento radical da linguagem permanece na conta da rebelião juvenil. Mas não em Helder. Impressiona, além da qualidade da poesia, à luz de todos os valores que se possa invocar - ritmo, imagens, originalidade, invenção, precisão -, a permanência desse ímpeto. Há um motivo evidente: desde o início e até hoje, sua criação é movida pela paixão. Negar o mundo, ou querer que se construa outro mundo através da revelação poética, não é dissociar poesia e vida. Daí transmitir a impressão de que descreve experiências visionárias-alucinatórias vividas, em passagens como esta: Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas/ para vê-las golfar sangue. Ou, com maior precisão: Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno/, Passo por entre jardins zodiacais, entre flores cerâmicas e rostos zoológicos/ que fosforescem (como não associar ao Rimbaud de Tomei um bom gole de veneno, três vezes bendita seja a minha resolução...? - e ao veneno de Rimbaud, fosse ele absinto ou haxixe, corresponder a fatos biográficos?).

Fazer poesia desse modo é promover a reconquista da corporeidade, objeto de alusões recorrentes: O umbigo brilha, cego. O púbis brilha,/ alto/ como talha./ Todo o corpo é um espelho torrencial com as fibras/ dentro das grutas. Tal experiência é abissal, um mergulho no primitivo e obscuro: Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,/ o cordão astral à criança aldebarã, não cortem/ o sangue, o ouro. Suscita êxtase e terror ao mesmo tempo, como ele não cessa de nos lembrar: Nunca digas o meu nome se esse nome/ não for o do medo. Inúmeras passagens permitem associá-lo aos modos de conhecimento revelado das heresias gnósticas: Deus caça-me com uma lança/ radiosa. Na seiva dos meus quartos húmidos, orbitais, volumosos,/ com uma flecha sonora.

A operação de projetar a palavra poética, o signo incandescente, no mundo, destruindo-o e recriando-o, tem um nome: magia. Com propriedade, Maria Lúcia Dal Farra, ensaísta e poeta, conhecedora de Helder, no posfácio de O corpo o luxo a obra, associa sua poesia à alquimia: Trata-se, pois, de algo equiparável a uma interferência exercida sobre um processo vulgar para obtenção do ouro, já que Helder atua sobre esse corpo no instante da formação de sua entidade, devolvendo, pois, a uma nova existência tal objeto, agora transmutado. Mostra, assim, como a operação alquímica corresponde, na poesia, à sublimação da coisa, tornando-a abstrata, e, ao mesmo tempo, à concretização do abstrato, conferindo corporeidade ao signo.

A propósito de relação entre poesia e vida, a consistência da poesia de Helder certamente está em relação direta com sua coerência no plano da conduta pessoal. Isso, desde as viagens de juventude, mencionadas em Os passos em volta, levando vida de marginal, até a sistemática recusa de prêmios, honrarias, evitando até mesmo aparecer em público, assumindo-se como avesso do literato perseguidor de glórias. Emissor de um contradiscurso, assim o encarna.

Enquadrar Helder, discutir se é mais próximo ao surrealismo, ao construtivismo, existencialismo, desconstrucionismo, o que for, é enveredar pela aridez escolástica do academicismo. Podíamos ser poupados das considerações, no prefácio de O corpo o luxo a obra, sobre o distanciamento de Helder com relação à dispersão da escrita surrealista, a não ser que o prefaciador Jorge Henrique Bastos nos explicasse, por exemplo, o que há de disperso na obra de um Mário Cesariny. Se for para situar Helder historicamente, o mais importante será mostrar como assimila, e transforma a seu modo, a vertente rebelde que parte de Baudelaire e inclui, evidentemente, o Surrealismo. Para qualificá-lo, basta indicá-lo como expoente máximo do que Octavio Paz havia denominado, acertadamente, de tradição da ruptura, assim demonstrando que essa tradição não se esgotou.

Quanto à edição, é evidente que, por melhor que se faça uma seleção dessas, sempre faltará muito. As 160 páginas são pouco para uma obra extensa e, toda ela, impressionante. São apenas mencionadas as traduções ou transformações de Helder, incluindo relatos mitopoéticos de povos tribais, seu modo de mostrar como dialoga com outras escritas e outras falas. Talvez algo possa vir a ser publicado em um Helder bis pela mesma editora, bem como, e o quanto antes, sua prosa, inseparável da poesia. A observar, ainda, que nesta edição foi respeitada a ortografia de Portugal, o que não dificulta em nada a leitura, esperando-se que o mesmo procedimento seja adotado na publicação de autores brasileiros lá, ultrapassando barreiras desnecessárias, puramente burocráticas (nossa dificuldade com o português de Portugal é no plano da língua falada, e não da escrita, conforme comprovado mais uma vez pela necessidade de legendas no excelente filme Os Capitães de Abril).

Na pauta da atualização em poesia portuguesa contemporânea, espera-se, agora, uma boa edição brasileira de Mário Cesariny, que, em seu país, passou merecidamente de outsider a monstro sagrado. Ou, como principal expressão da vertente apolínea, Sofia de Mello Breiner-Andersen

Há muitos outros bons nomes. Autores não faltam. Por isso, voltaremos ao assunto.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Herberto Helder

Sobre o Poema


Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne,
sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
os rios, a grande paz exterior das coisas,
as folhas dormindo o silêncio,
as sementes à beira do vento,
— a hora teatral da posse.
E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
Insustentável, único,
invade as órbitas, a face amorfa das paredes,
a miséria dos minutos,
a força sustida das coisas,
a redonda e livre harmonia do mundo.

— Embaixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério.

— E o poema faz-se contra o tempo e a carne.

domingo, 10 de agosto de 2008

Henriquetta Lisboa

Vem, doce morte


Vem, doce morte. Quando queiras.
Ao crepúsculo, no instante em que as nuvens
desfilam pálidos casulos
e o suspiro das árvores - secreto -
não é senão prenúncio
de um delicado acontecimento.

Quanto queiras. Ao meio-dia, súbito
espetáculo deslumbrante e inédito
de rubros panoramas abertos
ao sol, ao mar, aos montes, às planícies
com celeiros refertos e intocados.

Quando queiras. Presentes as estrelas
ou já esquivas, na madrugada
com pássaros despertos, à hora
em que os campos recolhem as sementes
e os cristais endurecem de frio.

Tenho o corpo tão leve (quando queiras)
que a teu primeiro sopro cederei distraída
como um pensamento cortado
pela visão da lua
em que acaso - mais alto - refloresça.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Boris Pasternak

Ser famoso...


Ser famoso não é bonito.
Não nos torna mais criativos.
São dispensáveis os arquivos.
Um manuscrito é só um escrito.

O fim da arte é doar somente.
Não são os louros nem as loas.
Constrange a nós, pobres pessoas,
Estar na boca de toda a gente.

Cumpre viver sem impostura.
Viver até os últimos passos.
Aprender a amar os espaços
E a ouvir o som da voz futura.

Convém deixar brancos à beira
Não do papel, mas do destino,
E nesses vãos deixar inscritos
Capítulos da vida inteira.

Apagar-se no anonimato,
Ocultando nossa passagem
Pela vida, como a paisagem
Oculta a nuvem com recato.



Alguns seguirão, passo a passo,
As pegadas do teu passar,
Mas tu não deves separar
Teu sucesso do teu fracasso.



Não deves renunciar a um mínimo
pedaço do teu ser,
Só estar vivo e permanecer
Vivo, e viver até o fim.

(1956)

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Edoardo Sanguineti



O Purgatório Do Inferno

este é o gato de botas, esta é a Paz de Barcelona
entre Carlos V e Clemente VII, é a locomotiva, é o pessegueiro
florido, o cavalo marinho: mas se virar a página, Alessandro,
vai ver ali o dinheiro:
estes são os satélites de Júpiter, esta é a Rodovia do Sol, é a lousa quadriculada, é o primeiro volume do Poetae Latini Aevi Carolini, são os sapatos, são as mentiras, é a Escola de Atenas, é a manteiga, é um cartão-postal que chegou hoje da Finlândia, é o músculo mandibular, é o porto: mas se virar a página, Alessandro, vai ver ali o dinheiro:
e este é o dinheiro.
e estes são os generais com as metralhadoras deles, e tem os cemitérios com as tumbas, e tem as agências bancárias com os cofres-fortes, e tem os livros de história com as histórias deles:
mas se virar a página, Alessandro, não vai conseguir ver nada.

(Poesia traduzida por Julio Cesar Monteiro Martins, Pisa, dezembro de 2006)

terça-feira, 15 de julho de 2008

A.M. Pires Cabral

Coffee break

Após a difícil, exaustiva
contemplação da paisagem,
descemos ao bar
para um merecido coffee break.

O café é um bom digestivo
para a compacta barrigada de estesias
vividas no tombadilho.
Qualquer coisa de tangível,
literal, a que é bom
agarrar-se um poeta quando em risco
de levitação.

Depois, dispersos pelas poltronas,
imitamos o criado do bar,
servindo uns aos outros
poemas e agudezas similares
em porcelana fina.

No fim, na cumplicidade
de quem tem tão denodadamente
gargarejado o Douro,
cada qual a seu modo e em seu tom,
piscamo-nos os olhos,
achamos que somos os maiores.

Isto é: cada um acha
que ele próprio é o maior –
não desdenhando embora
prestar homenagem à segunda
mas ainda assim grande grandeza
dos demais.

Abençoado Douro, abençoada
alquimia do Douro!

segunda-feira, 14 de julho de 2008

Manoel de Barros

Retrato Quase Apagado em que se Pode Ver Perfeitamente Nada
de "O Guardador de Águas"


I

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases. Por exemplo:
- Imagens são palavras que nos faltaram.
- Poesia é a ocupação da palavra pela Imagem.
- Poesia é a ocupação da Imagem pelo Ser.
Ai frases de pensar!
Pensar é uma pedreira. Estou sendo.
Me acho em petição de lata (frase encontrada no lixo)
Concluindo: há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

II
Todos os caminhos - nenhum caminho
Muitos caminhos - nenhum caminho
Nenhum caminho - a maldição dos poetas.

III
Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.
O rio ficou de pé e me olha pelos vidros.
Alcanço com as mãos o cheiro dos telhados.
Crianças fugindo das águas
Se esconderam na casa.

Baratas passeiam nas formas de bolo...

A casa tem um dono em letras.

Agora ele está pensando -

no silêncio Iíquido
com que as águas escurecem as pedras...

Um tordo avisou que é março.

IV
Alfama é uma palavra escura e de olhos baixos.
Ela pode ser o germe de uma apagada existência.
Só trolhas e andarilhos poderão achá-la.
Palavras têm espessuras várias: vou-lhes ao nu, ao
fóssil, ao ouro que trazem da boca do chão.
Andei nas pedras negras de Alfama.
Errante e preso por uma fonte recôndita.
Sob aqueles sobrados sujos vi os arcanos com flor!

V
Escrever nem uma coisa Nem outra -
A fim de dizer todas
Ou, pelo menos, nenhumas.
Assim,
Ao poeta faz bem
Desexplicar -
Tanto quanto escurecer acende os vaga-lumes.

VI
No que o homem se torne coisal,
corrompem-se nele os veios comuns do entendimento.
Um subtexto se aloja.
Instala-se uma agramaticalidade quase insana,
que empoema o sentido das palavras.
Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas
Coisa tão velha como andar a pé
Esses vareios do dizer.

VII
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.
Há que se dar um gosto incasto aos termos.
Haver com eles um relacionamento voluptuoso.
Talvez corrompê-los até a quimera.
Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.
Não existir mais rei nem regências.
Uma certa luxúria com a liberdade convém.

VII
Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,
Ovídio mostra seres humanos transformados
em pedras vegetais bichos coisas
Um novo estágio seria que os entes já transformados
falassem um dialeto coisal, larval,
pedral, etc.
Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

- Que os poetas aprenderiam -
desde que voltassem às crianças que foram
às rãs que foram
às pedras que foram.
Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar
a língua.
Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?
Seria uma demência peregrina.

IX
Eu sou o medo da lucidez
Choveu na palavra onde eu estava.
Eu via a natureza como quem a veste.
Eu me fechava com espumas.
Formigas vesúvias dormiam por baixo de trampas.
Peguei umas idéias com as mãos - como a peixes.
Nem era muito que eu me arrumasse por versos.
Aquele arame do horizonte
Que separava o morro do céu estava rubro.
Um rengo estacionou entre duas frases.
Uma descor
Quase uma ilação do branco.
Tinha um palor atormentado a hora.
O pato dejetava liquidamente ali.

sábado, 12 de julho de 2008

Bruno Tolentino

O ESPECTRO

(A Ivan Junqueira)


Não há como agarrar-te à natureza
quando a asa da noite baixa e faz
a sombra sobre a acha, a lenha presa

à luz da labareda que a desfaz;
morres despreparado ou morres bem,
mas passas pela cinza, meu rapaz.

Tudo talvez ressurja mais além,
mas ao abutre, albatroz, águia ou condor
o vôo acaba por pesar e tem

que perder altitude no esplendor:
dos páramos à esteira de uma nave
estende-se a amplidão, mas sem repor

fôlego a um coração até que a ave
recolha a asa e pronto, se acabou,
foi-se o que era tão doce! Tão suave

levitou-se e mais nada lembra o vôo...
Nada, nem mesmo a terra, eqüidistante
do que caiu como do que voltou,

com uma equanimidade impressionante.
E caso a interpelassem que diria?
Nada outra vez, ou menos que o ex-amante

fingindo-se impassível se algum dia
ouve dizer que tudo acaba assim.
Pois foi assim que o espectro da poesia

surgiu-me um belo dia, e veio a mim
assim que eu consegui levar a sério
os canteiros de Kant num jardim

à beira Tâmisa, ante um cemitério...
Lá estivera eu de mão no queixo
a espanar as lombadas do mistério,

seguindo a lógica ao seu belo fecho:
afinal, se a equação mais arbitrária
conseguiria amarrar a terra a um eixo,

qualquer cogitação imaginária
não seria nem mais nem menos frágil;
divagações da hora solitária,

arabescos da mente, sempre ágil
ao fazer de um trapézio o seu lugar.
Pois foi então que, assim como um presságio

obriga a respirar mais devagar,
mas faz bater mais forte o coração,
eu primeiro senti aquele olhar

antes de perceber a assombração
que entre o rio, o junquilho e o malmequer
vi caminhar em minha direção.

Atônito, amparei-me a uma mulher,
semidesfalecido: o encapotado
era a cara do Charles Baudelaire

do retrato, cuspido e escarrado!
Ninguém via o que estava acontecendo,
em toda aquela gente ali ao lado

ninguém notava aquele rosto idêntico
à corola da rosa corroída
em que Blake encarnara o sofrimento.

E lá vinha ele andando! Espavorida
mas alerta, habilíssima colméia,
a mente me exigia uma saída

e, assim como o avestruz ante a alcatéia,
insistia em não ver: não, não seria,
não podia ser ele, era outra idéia

a espumejar na velha alegoria
dos nevoeiros que complicam Londres...
Mas não havia erro! A ventania

havia depenado tanto as frondes
que atirava topázios e safiras
contra o bueiro em brasas do horizonte,

mas nele havia o ar dessas mentiras
que dizem a verdade: confrontou-me
e num rápido olhar deixou-me em tiras

os trapos da razão – era o meu homem!
Há múmias que uma vez desembrulhadas
têm escrito na cara o nosso nome.

Carros, ônibus, gente nas calçadas,
um semáforo ao longe, vaga-lume
estático entre sombras apressadas,

e aquilo a se agitar que nem um cume
de palmeira no ar – e andando, andando
e desferindo o olhar como um perfume

de gangrena fatal ensarilhando
o eterno câncer da imaginação
que desorbita a mente como um bando

de morcegos agrava a escuridão.
Por fim parou-me ao lado e imaginei
ouvir (talvez sonhasse, talvez não...)

um balbucio familiar e cheio
de ecos aos que andamos pelo canto:
“Andaste num vazio sempre alheio,

entre noções apenas e, no entanto,
nunca bastou sequer a consolar-te
tanta fabulação cheia de espanto,

de dor... Buscas o todo parte a parte,
queres as perfeições da geometria,
e ao fim do sonho circular da arte

entregas tudo à fantasmagoria,
aos jogos malabares da ilusão.
Andas equivocado e nem seria

de surpreender tua equivocação,
porque, se alguma vez desconfiaste
dessa imprudência, abriste o coração

à luz conceitual, o belo traste
que temes porque o adoras e te leva,
como o refém que és do que adoraste,

de lição em lição à mesma treva.
É tudo sempre a treva tumultuosa,
não por causa da carne, que se eleva

quando quer à estação miraculosa,
mas por causa do olhar que não quer ver
e abisma-se em si mesmo, como a rosa

amada pelo verme e sem poder
de o recusar, tentando resignar-se.
Não te resignes mais a conceber

um triunfo de idéias, um disfarce
para as caras da morte neste mundo,
uma equação qualquer que a mascarasse,

como o médico mente ao moribundo
e o coitado a si mesmo: também eu
meti-me com paixão nesse infecundo

escrínio de ilusões, mas vem do céu
a luz que nos sustém, a que alucina,
a luz conceitual, nasce de um breu.

Não sigas mais a falsa peregrina
que rapta a imagem, rouba-lhe o reflexo
e entrega os dois a um jogo que termina

por desfazer de tudo a cada nexo.
A terra é provisória e improvidente,
tudo é relâmpago entre a morte e o sexo,

mas a alma faminta não consente
que lhe mintam! A Idéia te convida
mas não recebe nunca e, de repente,

entre a porta da entrada e a da saída
perdes as proporções e logo a conta,
o fio da meada e o dom da vida;

fecha-se a última jaula e a fera tonta
descobre que agoniza e morre presa.
E no entanto repara: o cisne aponta

para a altura cantando, e com certeza
essa canção no extremo transfigura
a coisa moritura e a alma surpresa

entre o número, o nada e a noite escura...

quinta-feira, 10 de julho de 2008

Ossip Mandelstam II



Definição de Poesia

Um risco maduro de assobio.
O trincar do gelo comprimido.
A noite, afolha sob o granizo.
Rouxinóis num dueto-desafio.

Um doce ervilhal abandonado
A dor do universo numa fava.
Fígaro: das estantes e flautas -
Geada no canteiro, tombado.

Tudo o que para a noite releva
Nas funduras da casa de banho,
Trazer para o jardim um estrela
Nas palmas úmidas, tiritando.

Mormaço: como pranchas na água,
Mais raso. Céu de bétulas, turvo.
Se dirá que as estrelas gargalham,
E no entanto o universo está surdo.

(1917)
Tradução de Haroldo de Campos

terça-feira, 8 de julho de 2008

Ossip Mandelstam

Ossip Mandelshtam


A Era

Minha era, minha fera, quem ousa,
Olhando nos teus olhos, com sangue,
Colar a coluna de tuas vértebras?
Com cimento de sangue - dois séculos -
Que jorra da garganta das coisas?
Treme o parasita, espinha langue,
Filipenso ao umbral de horas novas.

Todo ser enquanto a vida avança
Deve suportar esta cadeia
Oculta de vértebras. Em torno
Jubila uma onda. E a vida como
Frágil cartilagem de criança
Parte seu ápex: morte da ovelha,
A idade da terra em sua infância.

Junta as partes nodosas dos dias:
Soa a flauta, e o mundo está liberto,
Soa a flauta, e a vida se recria.
Angústia! A onda do tempo oscila
Batida pelo vento do século.
E a víbora na relva respira
O outo da idade, áurea medida.


Vergônteas de nova primavera!
Mas a espinha partiu-se da fera,
Bela era lastimável. Era,
Ex-pantera flexível, que volve
Para trás, riso absurdo, e descobre
Dura e dócil, na meada dos rastros,
As pegadas de seus próprios passos.


(1923)



Tradução de Haroldo de Campos

terça-feira, 1 de julho de 2008



"We are born with a scream; we come into life with a scream, and maybe love is a
mosquito net between the fear of living and the fear of death."

domingo, 29 de junho de 2008

Sophia Andresen II

O JARDIM E A NOITE

Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente,
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.

Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entra a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

sexta-feira, 27 de junho de 2008



Poema XIV

de Roberto Piva
dedicado ao Carlinhos

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas
coxas imberbes & brancas.
vou dilapidar a riqueza de tua
adolescência. vou queimar teus
olhos com ferro em brasa.
vou incinerar teu coração de carne &
de tuas cinzas vou fabricar a
substância enlouquecida das
cartas de amor."

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Poesia

Bom, tudo pode ser melhorado (admito, Da Vinci, Billie Holiday, El Greco e 2046 me desmentem!), mas voltei a escrever. Estava travado há tempos.

Inversões

(para o Alberto)

Espelhos
que vêem o passado,
que vêm do passado.
Procuram mais do que mostram
e ofuscam, brilham, cegam...

Espelhos,
que refletem outros, outras, coisas.
A galinha degolada de Quiroga,
a vítima inocente sem altar decente.
E a culpa...

A morte da alma por acidente
e o espanto pelo paraíso.

(Rio, 04/2006, revisto em 06/2008)

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Jorge de Lima e o Brasil

Com a visão de oráculo dos poetas, JL nos avisou de onde viriam os problemas:

"Também há as naus que não chegam/mesmo sem terem naufragado;/não porque nunca tivessem/quem as guiasse no mar/ou não tivessem velame/ ou leme ou âncora ou vento/ ou porque se embebedassem/ ou rotas se despregassem/mas simplesmente porque/já estavam podres no tronco/da árvore que as tiraram".

É isto, de onde menos se espera, daí é que não sai nada mesmo! Àqueles que entregaram suas esperanças a esses que ora nos governam: Começar de novo!

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Manuel Bandeira

"Ama-me por amor do amor,
e assim hás de me amar por toda eternidade".

quarta-feira, 11 de junho de 2008

Roberto Piva




Poema Porrada

Eu estou farto de muita coisa
não me transformarei em subúrbio
não serei uma válvula sonora
não serei paz
eu quero a destruição de tudo que é frágil:
____cristãos fábricas palácios
____juízes patrões e operários
uma noite destruída cobre os dois sexos
minha alma sapateia feito louca
um tiro de máuser atravessa o tímpano de
____duas centopéias
o universo é cuspido pelo cu sangrento
____de um Deus-Cadela
as vísceras se comovem
eu preciso dissipar o encanto do meu velho
____esqueleto
eu preciso esquecer que existo
mariposas perfuram o céu de cimento
eu me entrincheiro no Arco-Íris
Ah voltar de novo à janela
____perder o olhar nos telhados como
____se fossem o Universo
o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos
eu preciso partir um dia para muito longe
o mundo exterior tem pressa demais para mim
São Paulo e a Rússia não podem parar
quando eu ia ao colégio Deus tapava os ouvidos para mim?
a Morte olha-me da parede pelos olhos apodrecidos
____de Modigliani
eu gostaria de incendiar os pentelhos de Modigliani
minha alma louca aponta para aLua
vi os professores e seus cálculos discretos ocupando
____o mundo do espírito
vi criancinhas vomitando nos radiadores
vi canetas dementes hortas tampas de privada
abro os olhos as nuvens tornam-se mais duras
trago o mundo na orelha como um brinco imenso
a loucura é um espelho na manhã de pássaros sem Fôlego

segunda-feira, 9 de junho de 2008

Sophia Andresen


PORQUE

Porque os outros se mascaram e tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não

Porque os outros são os túmulos calados
Onde germina calada podridão
Porque os outros se calam mas tu não

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo
Porque os outros são hábeis mas tu não

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos
Porque os outros calculam mas tu não.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 8 de junho de 2008

E.E.CUMMINGS II

Para quem prefere, segue o original:

[somewhere i have never travelled]


somewhere i have never travelled,gladly beyond
any experience,your eyes have their silence:
in your most frail gesture are things which enclose me,
or which i cannot touch because they are too near

your slightest look easily will unclose me
though i have closed myself as fingers,
you open always petal by petal myself as Spring opens
(touching skilfully,mysteriously) her first rose

or if your wish be to close me,i and
my life will shut very beautifully, suddenly,
as when the heart of this flower imagines
the snow carefully everywhere descending;

nothing which we are to perceive in this world equals
the power of your intense fragility: whose texture
compels me with the color of its countries,
rendering death and forever with each breathing

(i do not know what it is about you that closes
and opens; only something in me understands
the voice of your eyes is deeper than all roses)
nobody,not even the rain, has such small hands

e.e.cummings


Primeiros contatos através das transcriações de Augusto de Campos, e aquelas minúsculas sempre foram uma atração para mim. Mucho macho! E e.e.cummings é autor de alguns dos mais belos poemas de amor da língua inglesa (a avaliação não é minha, mas concordo com ela). Há um filme em que a Cameron Dias lê um poema dele para a Tony Colette e é a única coisa boa do filme. O poema é I carry with my heart e é lindo, tão lindo quanto o que segue abaixo.

nalgum lugar em que eu nunca estive,alegremente além
de qualquer experiência,teus olhos têm o seu silêncio:
no teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto

teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
embora eu tenha me fechado como dedos,nalgum lugar
me abres sempre pétala por pétala como a Primavera abre
(tocando sutilmente,misteriosamente)a sua primeira rosa

ou se quiseres me ver fechado,eu e
minha vida nos fecharemos belamente,de repente,
assim como o coração desta flor imagina
a neve cuidadosamente descendo em toda a parte;

nada que eu possa perceber neste universo iguala
o poder de tua imensa fragilidade:cuja textura
compele-me com a cor de seus continentes,
restituindo a morte e o sempre cada vez que respira

(não sei dizer o que há em ti que fecha
e abre;só uma parte de mim compreende que a
voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
ninguém, nem mesmo a chuva,tem mãos tão pequenas


(tradução: Augusto de Campos)

sábado, 7 de junho de 2008

Henry Murger

A Balada do Desesperado

— Quem bate à porta a tais horas?
— Abre, sou eu. Quem tu és?
Não se entra na minha casa
Tão tarde assim, bem o vês.

— Abre. — Teu nome? — Há geada,
Abre. Teu nome? — És tardio!
Qual é teu nome? — Ai, na cova
Um morto não tem mais frio.

Eu caminhei todo o dia
Do sul ao setentrião,
Ao pé da tua lareira
Quero sentar-me — Inda não!

Diz teu nome... — Eu sou a glória
E aspiro à posteridade...
— Passa fantasma irrisório...
— Ó dá-me hospitalidade!

Eu sou o amor e a esperança
As duas porções de Deus...
— Segue a estrada... A minha amante
Há muito me disse adeus!

— Eu sou a arte e a poesia,
Proscreveram-me... Abre! — Não!
Já não canto minha amante.
Nem sei que nome lhe dão!...

— Abre, que eu sou a riqueza,
E trago do ouro o fulgor,
— Posso dar-te a tua amante...
— Podes dar-me o seu amor?

— Sou o poder, tenho a púrpura.
Abre a porta! — Anelo vão!
Podes trazer-me a existência
Daqueles que já não sâo?!

— Se tu não abres teus lares
Senão a quem diz seu nome
Sou a morte! trago alívio
P'ra cada dor que consome!

Podes ver, trago na cinta
Ruidosas chaves fatais...
Abrigarei teu sepulcro
Do insulto dos animais.

— Entra, estrangeira funérea...
Perdoa à mendicidade,
Porque é no lar da miséria
Que tens hospitalidade.

Entra; cansei-me da vida
Que nada tem que me dar...
Há muito eu tinha desejos
(Não força) de me matar!

Entra no lar, bebe e come,
Dorme, e quando despertares,
Para pagar tua conta
Hás de levar-me aos teus lares.

Eu te esperava, eu te sigo...
Vamos... arrasta-me... assim...
Mas deixa o meu cão na terra
P'ra eu ter quem chore por mim!


Tradução de Castro Alves.

sexta-feira, 6 de junho de 2008

Charles Baudelaire II




Uma carniça
Tradução de Ivan Junqueira.

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

- Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Charles Baudelaire

A Uma Passante

tradução Guilherme de Almeida

A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;

Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.

Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?

Longe daquí! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!

quarta-feira, 4 de junho de 2008

Cecília Meireles




Despedida


Por mim, e por vós, e por mais aquilo
que está onde as outras coisas nunca estão,
deixo o mar bravo e o céu tranqüilo:
quero solidão.

Meu caminho é sem marcos nem paisagens.
E como o conheces? - me perguntarão.
- Por não ter palavras, por não ter imagens.
Nenhum inimigo e nenhum irmão.

Que procuras? Tudo. Que desejas? - Nada.
Viajo sozinha com o meu coração.
Não ando perdida, mas desencontrada.
Levo o meu rumo na minha mão.

A memória voou da minha fronte.
Voou meu amor, minha imaginação...
Talvez eu morra antes do horizonte.
Memória, amor e o resto onde estarão?

Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.
(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!
Estandarte triste de uma estranha guerra...)
Quero solidão.

[Cecília Meireles]

terça-feira, 3 de junho de 2008

Florbela II

Ensaio sobre o Poema Eu, de autoria de Maya Ogwaru, publicado no sítio prahoje.com

Eu

Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida…

Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!…

Sou aquela que passa e ninguém vê…
Sou a que chamam triste sem o ser…
Sou a que chora sem saber porquê…

Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!


Florbela Espanca - Livro de Mágoas

Este soneto não é o primeiro do seu livro ‘Livro de Mágoas’ embora seja uma excelente autobiografia. Nela está contida a dor, a incompreensão que Florbela sofria e não percebia.

Florbela apresenta-se como uma mulher desnorteada, sem rumo na vida, desejando a evasão e sendo ligada com a irrealidade. “Crucificada” e “dolorida” são os adjectivos escolhidos para se caracterizar psicologicamente. Crucificada por não ser compreendida pelos maridos e não só; “dolorida” pela tristeza que trazia dentro de si.

A negridão débil e desfeita que o destino mais forte (triste e amargo) irá conduzi-la á morte. Note aqui um sentimento de predestinação e o sentimento que a culpa da sua morte é do destino. Termina a quadra com uma caracterização sua global “Alma de luto” (morte / sombra) “sempre incompreendida” (Florbela compreendia muito bem que nem toda a gente a aceitava e a entendia e foi esse factor que a fez desenvolver os seus poemas)

No primeiro terceto destaca a falta de atenção, a descriminação, o estereótipo que sofria por toda a gente pensar que estava sempre triste, acabando por confessar não saber o porquê de muitas vezes chorar. Florbela muitas vezes nos seus poemas confessa que não se sabe definir porque ainda não se encontrou, provavelmente a sua tristeza sistemática muitas vezes tinha um significado que ela própria nem sabia.

A predestinação do amor, do príncipe que era suposto vê-la e que nunca a encontrou. Talvez o melhor verso ou terceto que resuma a vida amorosa de Florbela Espanca. Uma vida cheia de amores, sem que nenhum fosse o certo.

Estudo sobre o poema feito por Maya Ogwaru

Florbela Espanca




Um ícone, muuuitos sonetos, muitos poemas. Há uma edição portuguesa, em dois volumes, de seus poemas, que é uma beleza. Muitas informações aqui.

Desalento

Às vezes oiço rir, é ’ma agonia
Queima-me a alma como estranha brasa
Tenho ódio à luz e tenho raiva ao dia
Que me põe n’alma o fogo que m’abrasa!

Tenho sede d’amar a humanidade…
Eu ando embriagada… entontecida…
O roxo de maus lábios é saudade
Duns beijos que me deram n’outra vida!

Ei não gosto do Sol, eu tenho medo
Que me vejam nos olhos o segredo
Que só saber chorar, de ser assim…

Gosto da noite, imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!


e também

Sonhos


Ter um sonho, um sonho lindo,
Noite branda de luar,
Que se sonhasse a sorrir…
Que se sonhasse a chorar…

Ter um sonho, que nos fosse
A vida, a luz, o alento,
Que a sonhar beijasse doce
A nossa boca… um lamento…

Ser pra nós o guia, o norte,
Na vida o único trilho;
E depois ver vir a morte

Despedaçar esses laços!…
…É pior que ter um filho
Que nos morresse nos braços!

quarta-feira, 30 de abril de 2008

A PLENOS PULMÕES




Primeira Introdução ao Poema
Caros
camaradas
futuros!
Revolvendo
a merda fóssil
de agora,
perscrutando
estes dias escuros,
talvez
perguntareis
por mim.

Ora,
começará
vosso homem de ciência,
afagando os porquês
num banho de sabença,
conta-se
que outrora
um férvido cantor
a água sem fervura
combateu com fervor(1).
Professor,
jogue fora
as lentes-bicicleta!
A mim cabe falar
de mim
de minha era.
Eu – incinerador,
eu – sanitarista,
a revolução
me convoca e me alista.
Troco pelo front
a horticultura airosa
da poesia –
fêmea caprichosa.
Ela ajardina o jardim virgem
vargem
sombra
alfombra.
“É assim o jardim de jasmim,
o jardim de jasmim do alfenim."
Este verte versos feito regador,
aquele os baba,
boca em babador, –
bonifrates encapelados,
descabelados vates –
entendê-los,
ao diabo!,
quem há-de...
Quarentena é inútil contra eles
– mandolinam por detrás das paredes:
"Ta-ran-tin, ta-ran-tin,
ta-ran-ten-n-n..."
Triste honra,
se de tais rosas
minha estátua se erigisse:
na praça
escarra a tuberculose;
putas e rufiões
numa ronda de sífilis.
Também a mim
a propaganda
cansa,
é tão fácil
alinhavar
romanças, –
Mas eu
me dominava
entretanto
e pisava
a garganta do meu canto.
Escutai,
camaradas futuros,
o agitador,
o cáustico caudilho,
o extintor
dos melífluos enxurros:
por cima
dos opúsculos líricos,
eu vos falo
como um vivo aos vivos.
Chego a vós,
à Comuna distante,
não como Iessiênin,
guitarriarcaico.
Mas através
dos séculos em arco
sobre os poetas
e sobre os governantes.
Meu verso chegará,
não como a seta
lírico-amável,
que persegue a caça.
Nem como
ao numismata
a moeda gasta,
nem como a luz
das estrelas decrépitas.
Meu verso
com labor
rompe a mole dos anos,
e assoma
a olho nu,
palpável,
bruto,
como a nossos dias
chega o aqueduto
levantado
por escravos romanos.
No túmulo dos livros,
versos como ossos,
se estas estrofes de aço
acaso descobrirdes,
vós as respeitareis,
como quem vê destroços
de um arsenal antigo,
mas terrível.
Ao ouvido
não diz
blandícias
minha voz;
lóbulos de donzelas
de cachos e bandós
não faço enrubescer
com lascivos rondós.
Desdobro minhas páginas
– tropas em parada,
e passo em revista
o front das palavras.
Estrofes estacam
chumbo-severas,
prontas para o triunfo
ou para a morte.
Poemas-canhões, rígida coorte,
apontando
as maiúsculas
abertas.
Ei-la,
a cavalaria do sarcasmo,
minha arma favorita,
alerta para a luta.
Rimas em riste,
sofreando o entusiasmo,
eriça
suas lanças agudas.
E todo
este exército aguerrido,
vinte anos de combates,
não batido,
eu vos dôo,
proletários do planeta,
cada folha
até a última letra.
O inimigo
da colossal
classe obreira,
é também
meu inimigo
figadal.
Anos
de servidão e de miséria
comandavam
nossa bandeira vermelha.
Nós abríamos Marx
volume após volume,
janelas
de nossa casa
abertas amplamente,
mas ainda sem ler
saberíamos o rumo!
onde combater,
de que lado,
em que frente.
Dialética,
não aprendemos com Hegel.
Invadiu-nos os versos
ao fragor das batalhas,
quando,
sob o nosso projétil,
debandava o burguês
que antes nos debandara.
Que essa viúva desolada,
– glória –
se arraste
após os gênios,
merencória.
Morre,
meu verso,
como um soldado
anônimo
na lufada do assalto.

Cuspo
sobre o bronze pesadíssimo,

cuspo
sobre o mármore viscoso.
Partilhemos a glória, –
entre nós todos, –
o comum monumento:
o socialismo,
forjado
na refrega
e no fogo.
Vindouros,
varejai vossos léxicos:
do Letes
brotam letras como lixo –
"tuberculose",
"bloqueio",
"meretrício".
Por vós,
geração de saudáveis, –
um poeta,
com a língua dos cartazes,
lambeu
os escarros da tísis.
A cauda dos anos
faz-me agora
um monstro,
fossilcoleante.
Camarada vida,
vamos,
para diante,
galopemos
pelo qüinqüênio afora(2).
Os versos
para mim
não deram rublos,
nem mobílias
de madeiras caras.
Uma camisa
lavada e clara,
e basta, –
para mim é tudo.
Ao Comitê Central
do futuro
ofuscante,
sobre a malta
.dos vates
velhacos e falsários,
apresento
em lugar
do registro partidário
todos
os cem tomos
dos meus livros militantes.

dezembro, 1929/janeiro, 1930
(Tradução e notas de Haroldo de Campos)
Do livro "Maiakovski - Poemas"/Editora Perspectiva, 1982.

domingo, 27 de abril de 2008

Juan Ramon Jimenez



Prêmio Nobel, traduzido por Bandeira.

A PAZ


Ter em minhas mãos
Uns jasmins com sol,
com o primeiro sol;
Saber que amanhece
em meu coração;
Ouvir de manhã
Uma única voz...
É tudo o que quero.
Regressar sem ódios,
Calmo adormecer,
Sonhar ter nas mãos
Silindras com sol,
com o último sol;
Dormir escutando
Uma única voz...
É tudo o que quero.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Joni Mitchell II



Chelsea Morning



Woke up, it was a Chelsea morning
And the first thing that I heard
Was a song outside my window
And the traffic wrote the words
It came ringing up like Christmas bells
And rapping up like pipes and drums

Oh, won't you stay
We'll put on the day
And we'll wear it 'till the night comes

Woke up, it was a Chelsea morning
And the first thing that I saw
Was the sun through yellow curtains
And a rainbow on the wall
Blue, red, green and gold to welcome you
Crimson crystal beads to beckon

Oh, won't you stay
We'll put on the day
There's a sun show every second

Now the curtain opens on a portrait of today
And the streets are paved with passersby
And pigeons fly
And papers lie
Waiting to blow away

Woke up, it was a Chelsea morning
And the first thing that I knew
There was milk and toast and honey
And a bowl of oranges, too
And the sun poured in like butterscotch
And stuck to all my senses

Oh, won't you stay
We'll put on the day
And we'll talk in present tenses

When the curtain closes
And the rainbow runs away
I will bring you incense
Owls by night
By candlelight
By jewel-light
If only you will stay
Pretty baby, won't you
Wake up, it's a Chelsea morning

terça-feira, 15 de abril de 2008

Marcello Sorrentino




Perversa aerostação


E a natureza continua fazendo loucamente pessoas como eu,
mandando-as de encontro a mim, como você.

Eu vejo agora o que estamos fazendo: dizendo não
às flores para que sejamos nós a única flor.

E concedamos um terrível encanto à vida,
desfibrando flores sob o noturno

Algodoal de estrelas, beijando o devastado flanco
da lua, que também usa nossas máscaras de ladrão.

Posso sentir agora mesmo Deus nos imaginando,
o Tempo nos colecionando como borboletas:

E é lindo arder na invenção dos outros, florir
e ser segado como a safra de uma idéia!

Ó amigo, eu não sei como dizer que amo, tanto,
que me preocupo, de verdade, com a sua morte.

E se por amar com esta agonia das mães
voltassem os milagres aos meus lábios?

E usando os cabelos como colar, eu sorrisse só
porque um besouro ou um bambu perfuma o vento?

Mas estamos apenas num poema onde há muito
as montanhas e as flores vêm mentir.

Onde há mais tempo que as sombras eu ando
em minha direção, juntando com as mãos o céu rachado.

Continua porém a natureza a fazer pessoas como eu,
mandando-as de encontro ao céu, numa perversa aerostação.

Quem sabe o corpo enfim aprenderá sem perguntar?
Mas de pernas de fora, tento ainda interrogar o mar,

Enlouquecendo porque o mar não pára de responder,
e vagas, e vagas são as suas respostas.

domingo, 13 de abril de 2008

A poesia

AH! A poesia, suas vacas sacradas, seus sentidos ocultos, a quem atinge? O que diz?
Gertrude Stein para crianças menores de 54? Hum.... mas a idéia é ótima!

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Thom Gunn



THE HUG

este, de novo, é para o Alberto, que tem recebido tão poucos!!!

It was your birthday, we had drunk and dined
Half of the night with your old friend
Who'd showed us in the end
To a bed I reached in one drunk stride
Already I lay snug,
And drowsy with the wine dozed on one side.
I dozed, I slept. My sleep broke on a hug,
suddenly, from behind,
in wich the full lengths of our bodies pressed:
your instep to my heel,my shoulder-blades against your chest.
It was not sex, but I could feel
the whole strength of your body set,
or braced to mine,
and locking me to you
as if I were still twenty-two
when our grand passion had not yet
become familial
my quick sleep had deleted all
of intervening time and place.
I only knew
the stay of your secure firm dry embrace.

Herberto Helder





O amor em visita


Em cada mulher existe uma morte silenciosa.
E enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos,navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

William Carlos Williams





A Love Song

What have I to say to you
When we shall meet?
Yet—
I lie here thinking of you.

The stain of love
Is upon the world.
Yellow, yellow, yellow,
It eats into the leaves,
Smears with saffron
The horned branches that lean
Heavily
Against a smooth purple sky.

There is no light—
Only a honey-thick stain
That drips from leaf to leaf
And limb to limb
Spoiling the colours
Of the whole world.

I am alone.
The weight of love
Has buoyed me up
Till my head
Knocks against the sky.

See me!
My hair is dripping with nectar—
Starlings carry it
On their black wings.
See, at last
My arms and my hands
Are lying idle.

How can I tell
If I shall ever love you again
As I do now?




Em Poems 1916.

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Reinvenção



A vida só é possível reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vem de fundas piscinasde ilusionismo...
— mais nada.
Mas a vida,
a vida,
a vida,
a vida só é possívelreinventada.
Vem a lua, vem,
retira as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços cheios da tua Figura.
Tudo mentira!
Mentira da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva, fico:
recebida e dada.
Porque a vida,
a vida,
a vida,
a vida só é possível reinventada.