quinta-feira, 14 de agosto de 2008

A poesia moderna portuguesa

Reproduzo abaixo artigo escrito pelo poeta Cláudio Willer sobre a moderna poesia portuguesa, publicado na revista Agulha. Não pedi licença nem autorização, qualquer problema de direito autoral, postar comentário que retiro o artigo.
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HERBERTO HELDER E A GRANDE POESIA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA
Claudio Willer


Pode-se falar em relação insular, marcada por um considerável desconhecimento mútuo, entre as literaturas do Brasil e Portugal de hoje, mesmo ressalvando a existência de especialistas, iniciados e outras modalidades de bons leitores. Importantes contemporâneos brasileiros circulam mais em Paris do que em Lisboa; reciprocamente, grandes nomes da literatura portuguesa também são mais conhecidos em países europeus do que no Brasil. Não nos pensamos, essa é a verdade, como integrantes de uma comunidade lingüística de brasileiros, portugueses, africanos lusófonos e demais integrantes da mesma diáspora. Isolamo-nos de modo provinciano, ao contrário dos que usam a língua castelhana. Entre estes, conforme já apontei (a propósito de Octavio Paz em Agulha # 8, e com ênfase no ensaio Nossa língua, nossa literatura, disponível no Jornal de Poesia), combinam-se de modo dinâmico o particular e o universal, o regional e o cosmopolita, através de escritores com uma identidade assumida e declarada, ao mesmo tempo participantes de uma comunidade lingüística maior. Uma das conseqüências é o mercado forte de livros e outros bens culturais, que amplia a repercussão de autores de língua espanhola (sem necessariamente chegarem ao Brasil, à exceção dos monstros sagrados de praxe, acolhidos antes pela crítica européia, bastando verificar a quantidade de ibero-americanos importantes aos quais o acesso continua sendo através de matérias veiculadas em Agulha e na correlata Banda Hispânica).

É certo que, na última década, registrou-se crescimento do interesse brasileiro pela literatura de Portugal. Seu principal indício é o prestigio de José Saramago, o qual, ao tomar a si a defesa da lusofonia, tornou-se seu mais qualificado porta-voz. Com menor repercussão, houve lançamentos importantes de Lobo Antunes, Cardoso Pires, Filomena Cabral. Assim, algo da prosa portuguesa da segunda metade do século XX pode ser encontrado em nossas livrarias (além da boa distribuição das edições portuguesas, sendo necessário, porém, que alguém explique a razão do preço grandiloqüente dos livros vindos de Portugal). Ainda estão ausentes outros bons nomes - Vergílio Ferreira, Alçada Batista, etc. Mas é na poesia que há uma lacuna a ser coberta, equivalente ao intervalo entre a geração para a qual a leitura de Fernando Pessoa revelou novas dimensões da criação, e aquela dos poetas publicados dos anos 40/50 até hoje (mas, mesmo em matéria de modernismo português, falta algo, cabendo lembrar, a propósito, o artigo de Sérgio Lima, Almada Negreiros: o desígnio do claro, em Agulha # 2-3).

Um passo importantíssimo para vencer esse fosso é, não só a publicação, mas a boa repercussão da coletânea brasileira de Herberto Helder, O corpo o luxo a obra (seleção e apresentação de Jorge Henrique Bastos, posfácio de Maria Lúcia Dal Farra, Editora Iluminuras, 2.000). Trata-se de leitura mais que necessária: é indispensável, permitindo que nossa atualização em poesia portuguesa contemporânea comece pelo melhor, pelo que há de mais expressivo e substancioso.

Foi bem assinalado, em matérias já publicadas, que Herberto Helder é um representante - talvez, hoje, o maior deles - da linhagem de poetas visionários, sistematicamente desregrados, inaugurada pelo Rimbaud de Iluminações e Uma Temporada no Inferno. Cabe invocar, em acréscimo, a idéia de imagem, tal como formulada por Pierre Reverdy, que desse modo conferiu o estatuto de uma poética às operações sobre a linguagem de Rimbaud - e de Lautréamont, Laforgue, Corbiére, Germain Nouveau, Jarry, dos que podem ser associados à vertente radicalmente inovadora do Simbolismo. Para Reverdy, a imagem poética se dá através da aproximação de realidades diferentes; e será tanto mais forte quanto mais distantes forem essas realidades assim aproximadas. No autor de Sources du Vent, tais idéias se realizam nos poemas em prosa e em versos longos e livres, através de símiles, mais que metáforas, onde o abajur do poente atenua meu delírio, e o ouro do sonho desperta quem dorme. Aproximações de realidades distintas constituem o veio central da obra de Breton, Eluard, Péret, dos demais poetas associados ao Surrealismo, bem como dos que se afastaram desse movimento e integram igualmente o melhor da lírica francesa do século XX, como Desnos, Prévert e Char. São centrais, também, na poesia de língua espanhola, tendo seu ponto máximo no Poeta em Nova York de Lorca, estando presentes, ainda, no jovem Neruda e no jovem Alberti, além de tantos ibero-americanos que se vincularam mais ou menos expressamente ao Surrealismo.

Em Portugal, por sua vez, a poesia de imagens surge como explosão, rebelião manifesta, entre 1945 e 50, através dos seus surrealistas: Mário Cesariny, António Maria Lisboa, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill, Mario-Henriqe Leiria, entre outros. Inicialmente manifestação à margem, constitui-se em tônica dominante. Por isso, a riqueza imagética contribui decisivamente para que a literatura portuguesa mereça especial atenção, oferecendo um interessante contraste com a produção brasilera contemporânea, mais cerebral e regrada em seus autores de maior prestígio.

Nesse contexto - e é importante grifar o contexto, o fato de nos referirmos a um poeta situado em um ambiente de grande poesia -, essa linhagem, iniciada por Rimbaud e Lautréamont, formulada por Reverdy e Breton, encontra em Herberto Helder seu ponto culminante, desde o antológico O Amor em Visita de 1958, com seu lirismo exacerbado: Dá-me uma mulher jovem com sua harpa de sombra/ e seu arbusto de sangue, seguindo-se outras criações espantosas: Em cada mulher existe uma morte silenciosa; ou Ver no aro de fogo de uma entrega/ tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus/ será criar-te para luz dos meus pulsos e instante/ do meu perpétuo instante. Ao longo deste O corpo o luxo a obra, prossegue o desfile de imagens fulgurantes: São claras as crianças como candeias sem vento,/ seu coração quebra o mundo cegamente. Ou: Esta linguagem é pura. No meio está uma fogueira/ e a eternidade das mãos. Ou então: A solidão de uma palavra. Uma colina quando a espuma/ salta contra o mês de maio/ escrito.

Imagens: é isto o que o leitor de O corpo o luxo a obra irá encontrar em suas 160 páginas: Olho a brancura espasmódica,/ a queimadura central/ dessa imagem. E nas centenas de páginas da edição portuguesa de Poesia Toda, pela Assírio & Alvim. Contudo, já em 1963 Helder dava uma espécie de salto, promovia algo como a sublimação do sublime, a imagética da imagem, em A Máquina Lírica. Nos poemas A bicicleta pela lua dentro - mãe, mãe - e, principalmente, em Joelhos, salsa, lábios, mapa, grupos de palavras, sem nexos sintáticos, a exemplo de Engenheiro, letra, grito, aspas, são repetidas como refrão, entremeadas de frases quebradas, inconclusas: A terra irada escrevia seu livro raso./ Enquanto por baixo as letras dos peixes/ fazendo som. A referência, o vínculo com o sentido exterior ao texto, o "real", "objetivo", são abolidos de vez; contudo, a estrutura do poema permanece em pé, incólume

Para se entender melhor o que Helder faz, cabe o paralelo com artes plásticas, imaginando-se uma colagem, uma sobreposição de imagens visuais, a partir da qual o artista fizesse uma nova colagem e restruturasse o já restruturado. Isso sim, é "poesia de poesia", expressão usada às vezes em favor do experimentalismo árido, da metalinguagem excessivamente cerebral, e que cabe com propriedade às desconstruções-reconstruções das quais um exemplo expressivo é Joelhos, salsa, lábios, mapa, mas que não param por aí, prosseguindo nos enigmas da série Antropofagias, de 1971, e nas descontinuidades e quebras de sintaxe de A cabeça entre as mãos, de 1981.

Convém lembrar, avançando na interpretação do empreendimento poético de Helder, o ensaio clássico de Edmund Wilson sobre Rimbaud e o Simbolismo, em O Castelo de Axel. Nele, o grande crítico demonstra que é característica daquele movimento, associada ao suposto decadentismo do Villiers de L’Isle Adam de Axel, a afirmação da palavra como mundo autônomo, a par da recusa da realidade, tal como dada em nossa sociedade. Pois bem: na obra de Herberto Helder, o movimento de afirmação da palavra, da linguagem pura, como ele diz, e, dialeticamente, da negação do mundo, entenda-se da sociedade burguesa, atingem o grau máximo de consistência; correlatamente, de beleza, de autêntico esplendor poético.

Em muitos, o inconformismo e conseqüente capacidade de inovar acabam arrefecendo, e o solapamento radical da linguagem permanece na conta da rebelião juvenil. Mas não em Helder. Impressiona, além da qualidade da poesia, à luz de todos os valores que se possa invocar - ritmo, imagens, originalidade, invenção, precisão -, a permanência desse ímpeto. Há um motivo evidente: desde o início e até hoje, sua criação é movida pela paixão. Negar o mundo, ou querer que se construa outro mundo através da revelação poética, não é dissociar poesia e vida. Daí transmitir a impressão de que descreve experiências visionárias-alucinatórias vividas, em passagens como esta: Há dias em que basta olhar de frente as gárgulas/ para vê-las golfar sangue. Ou, com maior precisão: Os lençóis brilham como se eu tivesse tomado veneno/, Passo por entre jardins zodiacais, entre flores cerâmicas e rostos zoológicos/ que fosforescem (como não associar ao Rimbaud de Tomei um bom gole de veneno, três vezes bendita seja a minha resolução...? - e ao veneno de Rimbaud, fosse ele absinto ou haxixe, corresponder a fatos biográficos?).

Fazer poesia desse modo é promover a reconquista da corporeidade, objeto de alusões recorrentes: O umbigo brilha, cego. O púbis brilha,/ alto/ como talha./ Todo o corpo é um espelho torrencial com as fibras/ dentro das grutas. Tal experiência é abissal, um mergulho no primitivo e obscuro: Não cortem o cordão que liga o corpo à criança do sonho,/ o cordão astral à criança aldebarã, não cortem/ o sangue, o ouro. Suscita êxtase e terror ao mesmo tempo, como ele não cessa de nos lembrar: Nunca digas o meu nome se esse nome/ não for o do medo. Inúmeras passagens permitem associá-lo aos modos de conhecimento revelado das heresias gnósticas: Deus caça-me com uma lança/ radiosa. Na seiva dos meus quartos húmidos, orbitais, volumosos,/ com uma flecha sonora.

A operação de projetar a palavra poética, o signo incandescente, no mundo, destruindo-o e recriando-o, tem um nome: magia. Com propriedade, Maria Lúcia Dal Farra, ensaísta e poeta, conhecedora de Helder, no posfácio de O corpo o luxo a obra, associa sua poesia à alquimia: Trata-se, pois, de algo equiparável a uma interferência exercida sobre um processo vulgar para obtenção do ouro, já que Helder atua sobre esse corpo no instante da formação de sua entidade, devolvendo, pois, a uma nova existência tal objeto, agora transmutado. Mostra, assim, como a operação alquímica corresponde, na poesia, à sublimação da coisa, tornando-a abstrata, e, ao mesmo tempo, à concretização do abstrato, conferindo corporeidade ao signo.

A propósito de relação entre poesia e vida, a consistência da poesia de Helder certamente está em relação direta com sua coerência no plano da conduta pessoal. Isso, desde as viagens de juventude, mencionadas em Os passos em volta, levando vida de marginal, até a sistemática recusa de prêmios, honrarias, evitando até mesmo aparecer em público, assumindo-se como avesso do literato perseguidor de glórias. Emissor de um contradiscurso, assim o encarna.

Enquadrar Helder, discutir se é mais próximo ao surrealismo, ao construtivismo, existencialismo, desconstrucionismo, o que for, é enveredar pela aridez escolástica do academicismo. Podíamos ser poupados das considerações, no prefácio de O corpo o luxo a obra, sobre o distanciamento de Helder com relação à dispersão da escrita surrealista, a não ser que o prefaciador Jorge Henrique Bastos nos explicasse, por exemplo, o que há de disperso na obra de um Mário Cesariny. Se for para situar Helder historicamente, o mais importante será mostrar como assimila, e transforma a seu modo, a vertente rebelde que parte de Baudelaire e inclui, evidentemente, o Surrealismo. Para qualificá-lo, basta indicá-lo como expoente máximo do que Octavio Paz havia denominado, acertadamente, de tradição da ruptura, assim demonstrando que essa tradição não se esgotou.

Quanto à edição, é evidente que, por melhor que se faça uma seleção dessas, sempre faltará muito. As 160 páginas são pouco para uma obra extensa e, toda ela, impressionante. São apenas mencionadas as traduções ou transformações de Helder, incluindo relatos mitopoéticos de povos tribais, seu modo de mostrar como dialoga com outras escritas e outras falas. Talvez algo possa vir a ser publicado em um Helder bis pela mesma editora, bem como, e o quanto antes, sua prosa, inseparável da poesia. A observar, ainda, que nesta edição foi respeitada a ortografia de Portugal, o que não dificulta em nada a leitura, esperando-se que o mesmo procedimento seja adotado na publicação de autores brasileiros lá, ultrapassando barreiras desnecessárias, puramente burocráticas (nossa dificuldade com o português de Portugal é no plano da língua falada, e não da escrita, conforme comprovado mais uma vez pela necessidade de legendas no excelente filme Os Capitães de Abril).

Na pauta da atualização em poesia portuguesa contemporânea, espera-se, agora, uma boa edição brasileira de Mário Cesariny, que, em seu país, passou merecidamente de outsider a monstro sagrado. Ou, como principal expressão da vertente apolínea, Sofia de Mello Breiner-Andersen

Há muitos outros bons nomes. Autores não faltam. Por isso, voltaremos ao assunto.

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