segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Edna St. Vincent Millay


O Canto Fúnebre da Insubmissão
Eu não concordo com a descida dos corações amantes à terra dura.
Assim é, será e foi desde tempos imemoriais: eles seguem pelas trevas, os sábios e os belos.
Coroados de lilases e de louros, eles partem; mas eu não me conformo.
Amantes e pensadores, contigo, dentro da terra, transformados na poeira morna e cega. Um fragmento do que tu sentias, daquilo que tu sabias, uma fórmula, uma frase apenas restou – mas o melhor está perdido.
As respostas rápidas e vivas, o olhar honesto, o riso, o amor – estes partiram.
Partiram para alimentar as rosas. Os botões serão meigos, elegantes e perfumados.
Eu sei. Mas eu não aprovo. Mais preciosa era a luz em teus olhos que todas as rosas do mundo.
Fundo, fundo, fundo na escuridão da cova, docemente, os belos, os ternos, os bons, calmamente eles descem, os inteligentes, os espirituais, os bravos.
Eu sei. Mas não estou de acordo. E eu não me conformo.

Edna St Vincent Millay, traduzido por Roberto Freire.

Um ano em que um adeus quis dizer muito mais do que estar ausente....sinto falta da Teresa, sentimos todos aqui em casa e, acredito, sentem muito pelo mundo que ela construiu com carinho, atenção e amor. Entendo, mas não estou de acordo e nem me conformo.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Waslta Borawski e os bigodes....




Como falar com humor daquilo que nos provocou dor suficiente para modificar nossa forma de ver o mundo? Walta Borawski percebeu uma nesga de luz nessas névoas pesadas dos sentimentos feridos de todos nós! Sua forma de sentir a vida foi modificada, mas não necessariamente para pior. Só uma questão de enfoque.

"English was only a second language..."

English was only a second
language, never second nature
to my maternal grandfather. He

would shout the heavy
fragments of sentence:
Money! Under! Mattress!

He didn't trust banks, he
knew that here in America
we hide things. When I

was 15 he wanted to see me
with my pants down I took
them off in his toolshed

He ran his fingers across
my pubic hair; said
Ah! Moustache! That year

he died; I began
looking for other men who'd
take this sort of interest

but it's never been the same
with the proper sentences.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Ziper!!ZIper!!


Com as palavras certas, uma situação banal transforma-se em poesia! De Ivor C. Treby, na coletânea Gay Love Poetry, de Neil Powell:


Incident in the Central Line

you zipped up to fast when the train came in
reluctant to stop you left it too late
there under the arches at Lancaster Gate
the metal teeth bit through the foreskin

i stood and watched through the tubetrain door
as you your game with the other forsook
saw your whitening face and your stricken look

the bright line of blood on the floor

three nights later the dried stain bear
witness a moment you'll not soon forget
i see your face when these drops were wet
and the smile that even then lingered there

(p. 61, Gay Love Poetry,Carroll&Graf Publishers)

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Michel Foucault



Foucault está sempre por aí, guiando, dando direções. Apesar de antiga, esta entrevista cai bem, neste momento de recrudescimento da violência contra homossexuais e pessoas que fogem ao padrão que agradaria aos agressores.
E aprender nunca é demais, não é?

ESCOLHA SEXUAL, ATO SEXUAL


– Eu gostaria de começar perguntando o que você pensa sobre a recente obra de John Boswell sobre a história da homossexualidade entre o início da era cristã e o fim da Idade Média[1]. Como historiador, você acha válida a metodologia utilizada por ele? Em que medida, pensa você, as conclusões às quais chega Boswell contribuem para melhor compreender o que é o homossexualismo atualmente?
- Temos aí, seguramente, um estudo muito importante, cuja originalidade é já evidente na maneira em que ele propõe o problema. Do ponto de vista metodológico, a rejeição de Boswell da oposição estabelecida entre homossexual e heterossexual – que desempenha um papel muito importante na maneira como nossa cultura considera a homossexualidade ­– constitui um progresso, não somente para a ciência, mas também para a crítica cultural. A introdução do conceito de gay (na definição que é dada por Boswell), ao mesmo tempo em que fornece um precioso instrumento de análise, nos auxilia a melhor compreender a imagem que as pessoas têm delas mesmas e de seus comportamentos sexuais. No que concerne aos resultados da pesquisa, esta metodologia permite descobrir que isto que se tem chamado de repressão da homossexualidade não remonta ao cristianismo, propriamente falando, mas a um período mais tardio da era cristã. É importante, neste tipo de análise, perceber as idéias que as pessoas têm de sua sexualidade. O comportamento sexual não é, como muito se costuma supor, a superposição, por um lado de desejos oriundos de instintos naturais e, por outro, de leis permissivas e restritivas que ditam o que se deve e o que não se deve fazer. O comportamento sexual é mais que isso. É também a consciência do que se faz, a maneira que se vê a experiência, o valor que se a atribui. É, neste sentido, creio eu, que o conceito de gay contribui para uma apreciação positiva – mais que puramente negativa – de uma consciência na qual o afeto, o amor, o desejo, as relações sexuais são valorizadas.

- Seu trabalho recente o tem conduzido, se eu não me engano, a estudar a sexualidade na Grécia antiga.
- Exatamente, e este livro de Boswell me serviu de guia, na medida em que me indicou onde procurar o que faria o valor que as pessoas atribuem a seus comportamentos sexuais.

- Essa valorização do contexto cultural e do discurso que as pessoas têm a respeito de suas condutas sexuais é reflexo de uma decisão metodológica de contornar a distinção entre predisposição inata à homossexualidade e condicionamento social? Você tem alguma posição a esse respeito?- Não tenho estritamente nada a dizer sobre esse ponto. Sem comentários.

- Você acha que não há uma resposta para esta questão? Ou que esta é uma falsa questão? Ou simplesmente ela não o interessa?
- Não, nada disso. Eu simplesmente não creio que seja útil falar de coisas que estão além de minha competência. A questão que você coloca não é de minha alçada, e eu não gosto de falar de coisas que realmente não constituem o objeto do meu trabalho. Sobre esta questão eu tenho somente uma opinião, e por ser uma opinião, é sem interesse.

– Mas as opiniões podem ser interessantes, você não acha?
– É verdade, eu poderia dar minha opinião, mas ela apenas teria sentido na medida em que todos fossem consultados. Eu não quero, sob pretexto de que estou sendo entrevistado, me aproveitar de uma posição de autoridade para fazer comércio de opiniões.

Está bem. Vamos, então, mudar de assunto. Você pensa que se possa legitimamente falar de consciência de classe no que concerne aos homossexuais? Deve-se encorajar os homossexuais a se considerar como parte de uma classe, da mesma forma que os operários não qualificados ou que os negros em certos países? Quais devem ser, segundo você, os objetivos políticos dos homossexuais, enquanto grupo?
- Em resposta à sua primeira questão, eu diria que a consciência da homossexualidade vai certamente além da experiência individual e compreende o sentimento de pertencimento a um grupo social particular. É um fato incontestável, que remonta a tempos muito antigos. Certamente, essa manifestação da consciência coletiva dos homossexuais vem mudando com o tempo e varia de um lugar para outro. Por exemplo, em diversas ocasiões, ela tomou a forma de um pertencimento a um tipo de sociedade secreta ou de pertencimento a uma raça maldita, ou ainda de pertencimento a uma fração da humanidade que foi ao mesmo tempo privilegiada e perseguida – a consciência coletiva dos homossexuais tem sofrido numerosas transformações, todas, diga-se de passagem, como a consciência coletiva dos operários não qualificados. É verdade que, mais recentemente, alguns homossexuais, segundo o modelo político, têm tentado formar uma certa consciência de classe. Minha impressão é de não se obteve realmente um sucesso, quaisquer que fossem as conseqüências políticas dessa atitude, porque os homossexuais não constituem uma classe social. Isso não quer dizer que não se possa imaginar uma sociedade onde os homossexuais constituam uma classe social. Mas dado nosso modo atual de organização econômico e social, não vejo muitas possibilidades disso se efetuar.

Quanto aos objetivos políticos do movimento homossexual, dois pontos podem ser sublinhados. É preciso, em primeiro lugar, considerar a questão da liberdade de escolha sexual. Eu digo liberdade de escolha sexual e não liberdade de ato sexual, porque certos atos, como o estupro não devem ser permitidos, quer se dêem entre um homem e uma mulher ou entre dois homens. Eu não creio que deveríamos fazer de uma forma de liberdade absoluta, de liberdade total de ação no domínio sexual nosso objetivo. Por outro lado, quando a questão é a escolha sexual, nossa intransigência deve ser total. A liberdade de escolha sexual implica a liberdade de expressão dessa escolha. Por isso, eu entendo a liberdade de manifestar ou de não manifestar essa escolha. No que diz respeito à legislação, é verdade que têm acontecido progressos consideráveis neste assunto, apontando para uma maior tolerância, mas há ainda muito o que fazer.

Em segundo lugar, um movimento homossexual pode adotar como objetivo colocar a questão do lugar que ocupam, para o indivíduo em uma dada sociedade, a escolha sexual, o comportamento sexual e os efeitos das relações sexuais entre as pessoas. Essas questões são fundamentalmente obscuras. Veja, por exemplo, a confusão e equivoco que rodeia a pornografia ou a falta de clareza que caracteriza a questão do estatuto legal definidores da relação entre duas pessoas do mesmo sexo. Eu não quero dizer que a legislação do casamento entre homossexuais deva se constituir em um objetivo, mas nós temos uma série de questões concernentes à inserção e o reconhecimento no interior do quadro legal e social de um certo número de relações entre indivíduos, para os quais devemos encontrar uma resposta.

- Você então considera, se eu bem entendi, que o movimento homossexual não deve somente adotar por objetivo aumentar a liberdade legal, mas devem também colocar questões mais abrangentes e mais profundas sobre o papel estratégico que desempenham as preferências sexuais e sobre a maneira como essas preferências são percebidas. Você pensa que o movimento homossexual não deveria limitar-se somente à liberalização de leis relativas à escolha sexual do indivíduo, mas deveria também incitar ao conjunto da sociedade a repensar seus pressupostos no que diz respeito à sexualidade. O que eu gostaria de dizer, em outros termos, é que os homossexuais não seriam os desviados que é preciso deixar viver em paz, mas é preciso destruir todo o sistema conceitual que classifica os homossexuais entre os desviados. Eis o que coloca interessantemente em jogo a questão dos professores homossexuais. Por exemplo, no debate que se instaurou na Califórnia, acerca do direito dos homossexuais ensinarem em escolas primárias ou secundárias, os que estão contra esse direito se fundamentam não somente sobre a idéia de que os homossexuais possam constituir um perigo para a inocência, na medida em que eles estariam suscetíveis de tentar seduzir seus alunos, mas também sobre o fato de que os homossexuais podem pregar a homossexualidade.
– Toda esta questão, veja, foi mal formulada. Em caso nenhum a escolha sexual de um indivíduo deve determinar a profissão que lhe é permitida ou que lhe é proibida exercer. As práticas sexuais simplesmente não são critérios pertinentes para decidir a capacidade de um indivíduo para exercer uma dada profissão. Claro, você pode me dizer, "mas se essa profissão é utilizada pelos homossexuais para estimular outras pessoas a se tornarem homossexuais?”
Eu lhe responderia isto: você crê que os professores que, durante anos, dezenas de anos, de séculos, explicaram às crianças que a homossexualidade era inadmissível; você crê que os manuais escolares que expurgaram a literatura e falsificado a história, com o objetivo de excluir um certo número de condutas sexuais, não causaram danos pelo menos tão sérios quanto os que se podem imputar a um professor homossexual que fale da homossexualidade e que o defeito é só explicar uma dada realidade, uma experiência vivida?

O fato de que um professor seja homossexual apenas tem efeitos eletrizantes e extremos sobre seus alunos se o resto da sociedade se recusar a admitir a homossexualidade. A priori, um professor homossexual não deve colocar mais problemas do que um professor calvo, um professor homem numa escola de meninas, uma professora mulher em uma escola de meninos ou um professor árabe em uma escola do XVIo distrito de Paris.

Quanto ao problema do professor homossexual que busque ativamente seduzir seus alunos, tudo o que eu posso dizer é que a possibilidade desse problema é presente em todas as situações pedagógicas; encontra-se bem mais exemplos deste tipo de conduta entre os professores heterossexuais – simplesmente porque eles constituem a maior parte dos professores.

– Observa-se uma tendência cada vez mais marcada, nos círculos intelectuais americanos, em particular entre as feministas mais radicais, em distinguir entre a homossexualidade masculina e a feminina. Esta distinção repousa sobre duas coisas. De início, se o termo homossexualidade é empregado para designar não somente uma inclinação pelas relações afetivas com pessoas do mesmo sexo, mas também uma tendência a encontrar, em pessoas do mesmo sexo, uma sedução e uma gratificação eróticas, então é importante sublinhar coisas muito diferentes, no plano físico, em um e outro caso. A outra ideia na qual se funda a distinção é que as lésbicas, em seu conjunto, parecem procurar em outra mulher o que se oferece em uma relação heterossexual estável: apoio, afetividade, compromisso a longo prazo. Se isso não acontece no caso dos homens homossexuais, então se pode dizer que a diferença é chocante, senão fundamental. A distinção lhe parece útil e viável? Quais motivos se podem discernir, que justifiquem essas diferenças que um bom número de feministas radicais influentes destacam com tanta insistência?

Não posso deixar de cair na risada.

– Minha questão é divertida de uma maneira que me escapa, estúpida ou as duas coisas?

– Ela certamente não é estúpida, mas eu a acho muito divertida, sem dúvida por razões que eu não poderia explicar, mesmo se eu quisesse. Eu diria que a distinção proposta não me parece muito convincente, se eu julgar pelo que observo na atitude das lésbicas. Mas, além disso, é preciso falar das pressões diferentes que se exercem sobre os homens e as mulheres que se declaram homossexuais ou tentam viver como tais. Eu não creio que as feministas radicais de outros países teriam, nestas questões, o ponto de vista que você atribui ao círculo das intelectuais americanas.

– Freud declara na “Psicogênese de um caso de homossexualidade feminina” que todos os homossexuais são mentirosos[2]. Não seria necessário levar essa afirmação a sério para perguntar se a homossexualidade não comporta uma tendência à dissimulação que teria levado Freud a fazer esta afirmação. Se substituirmos a palavra “mentira” por palavras como “metáfora” ou “expressão indireta” não nos aproximaríamos mais do estilo homossexual? Não há algo de interessante em falar de um estilo ou de uma sensibilidade homossexuais? Richard Sennet, por sua vez, acha que não há estilo homossexual, assim como não há estilo heterossexual. É este também seu ponto de vista?
-Sim, eu não creio que tenha muito sentido em falar de um estilo homossexual. Sob o plano mesmo da natureza, o termo homossexualidade não significa muita coisa. Estou precisamente lendo um livro interessante, lançado há pouco nos Estados Unidos e que se intitula Proust and the Art of Loving (Proust e a arte de amar)[3] O autor mostra a dificuldade de dar um sentido à proposição “Proust era homossexual”. Parece-me que temos aqui, definitivamente, uma categoria inadequada. Inadequada no sentido onde, por um lado, não se pode classificar os comportamentos e, por outro lado o termo não dá conta do tipo de experiência que se tem. Pode-se, a rigor, dizer que há um estilo gay, ou pelo menos, uma tentativa progressiva de recriar um certo estilo de existência, uma forma de existência ou uma arte de viver que se pode chamar “gay”.

Em resposta à sua questão sobre a dissimulação, é verdade que no séc. XIX, por exemplo, era necessário em certa medida, esconder sua homossexualidade. Mas tratar os homossexuais como mentirosos equivale a tratar como mentirosos os resistentes em uma ocupação militar, ou tratar os judeus como agiotas, em uma época onde a profissão de agiota era a única que lhes era permitido exercer.

– Parece evidente, entretanto, pelo menos no plano sociológico que se possa assinalar ao estilo gay certas características, certas generalizações também – apesar de seu riso constante – recordam formas estereotipadas como a promiscuidade, o anonimato entre parceiros sexuais, a existência de relações puramente físicas, etc.

– Sim, mas as coisas não são assim tão simples. Em uma sociedade como a nossa onde a homossexualidade é reprimida – e severamente – os homens gozam de uma liberdade bem maior do que as mulheres. Os homens têm a possibilidade de fazer amor bem mais freqüentemente e em condições notadamente menos restritivas. Criaram-se casas de prostituição para satisfazer suas necessidades sexuais. De maneira irônica, isso teve como efeito uma certa permissividade em torno das práticas sexuais entre os homens. Considera-se que o desejo sexual é mais intenso nos homens, e então têm uma maior necessidade de dar vazão ao seu impulso. Assim, ao lado desses prostíbulos, foram aparecendo banhos onde os homens podiam se encontrar e ter entre eles relações sexuais. Os banhos tinham precisamente essa função. Ele era um lugar onde os heterossexuais se encontravam para o sexo. Penso que esses banhos só foram fechados no séc. XVI, sob o pretexto de que eles eram lugares de uma baixaria sexual inaceitável. Desta maneira, mesmo a homossexualidade se beneficiou de uma certa tolerância em ralação às práticas sexuais enquanto se limitassem a um simples encontro físico. E não somente a homossexualidade se beneficiou com esta situação, mas, através de um contorno singular – comum neste gênero de estratégias –, ela inverteu os critérios de tal maneira que os homossexuais tem podido, em suas relações físicas, gozar de uma liberdade maior que a dos heterossexuais. Em conseqüência, os homossexuais têm hoje a satisfação de saber que em um certo número de países – a Holanda, a Dinamarca, os Estados Unidos e mesmo um país provinciano como a França –, as possibilidades de encontros sexuais são imensas. Deste ponto de vista, a consumação, se poderia dizer, tem aumentado muito. Mas isso não é necessariamente uma condição natural da homossexualidade, um dado biológico.

- O sociólogo americano Philip Rieff, em um ensaio sobre Oscar Wilde intitulado The Impossible Culture (A cultura impossível)[4], vê em Wilde um precursor da cultura moderna. O ensaio começa com uma longa citação dos atos do processo de Oscar Wilde seguida de uma série de questões que o autor levanta quanto à viabilidade de uma cultura isenta de qualquer interdição – de uma cultura que não conhece, então, a necessidade da transgressão. Examinemos, se você quer, o que diz Philip Rieff:

“Uma cultura apenas resiste à ameaça da possibilidade pura contra ela, na medida em que seus membros aprendam por meio de sua vinculação a ela, a restringir as eventuais escolhas oferecidas”.

“À medida que a cultura é interiorizada e se torna caráter, é a individualidade que é reprimida, isso é o que Wilde mais valoriza. Uma cultura em crise favorece o desabrochar da individualidade; uma vez interiorizadas as coisas não pesam tanto para moderar o jogo na superfície da experiência. Pode-se considerar a hipótese segundo a qual, em uma cultura que atingisse a crise máxima, tudo poderia ser expresso e nada seria verdadeiro”.

“Sociologicamente, uma verdade é tudo o que milita contra a capacidade dos homens a expressarem tudo. A repressão é a verdade”.

O que Rieff diz de Wilde e da ideia de cultura encarnada por Wilde parece plausível a você?

– Eu não estou seguro de que compreendo a observação do professor Rieff. O que ele entende, por exemplo, por “a repressão é a verdade”?

– Na realidade, eu creio que esta idéia é muito próxima à que você explica em seus livros quando você diz que a verdade é o produto de um sistema de exclusões, que ela é uma rede, uma épistémè, que define o que pode e o que não pode ser dito.

– A questão importante, me parece, não é de saber se uma cultura isenta de restrições é possível ou mesmo desejável, mas se o sistema de repressões no interior do qual uma sociedade funciona deixa os indivíduos livres para transformar esse sistema. Haverá sempre repressões que serão intoleráveis a certos membros da sociedade. O necrófilo acha intolerável que o acesso aos túmulos lhe seja proibido. Mas um sistema de repressões apenas se torna verdadeiramente intolerável quando os indivíduos que são submissos a esse sistema não têm mais os meios para modificá-lo. Isto pode acontecer quando sistema se torna intangível, seja quando se o considera como um imperativo moral ou religioso ou conseqüência necessária da ciência médica. Se o que Rieff quer dizer é que as restrições devem estar claras e bem definidas, então eu estou de acordo.

– Na realidade, Rieff diria que uma verdadeira cultura é aquela na qual as verdades essenciais foram bem interiorizadas por cada um e não sendo é necessário exprimi-las verbalmente. É claro que, em uma sociedade de direito, seria necessário que o leque de coisas não permitidas fosse explicito, mas as grandes crenças, ficam, em sua maior parte, inacessíveis a uma formulação simples. Uma parte da Reflexão de Rieff é dirigida contra a idéia que é desejável livrar-se de crenças em nome de uma liberdade perfeita e também contra a idéia que as restrições são, por definição, o que devemos nos empenhar em fazer desaparecer.

– Não há dúvida que uma sociedade sem restrições é inconcebível. Mas eu apenas posso repetir, e dizer que essas restrições devem ser suportadas pelos que ao menos têm a possibilidade de as modificar. No que diz respeito às crenças, eu não creio que Rieff e eu estejamos de acordo, nem sobre seu valor, nem sobre seu sentido, nem sobre as técnicas que permitem ensiná-las.

 Você tem, sem dúvida nenhuma, razão sobre este ponto. Podermos deixar agora as esferas do direito e da sociologia para nos voltar ao domínio das letras. Eu gostaria que você comentasse a diferença entre a erótica, tal como se apresenta na literatura heterossexual e o sexo que aparece na literatura homossexual. O discurso sexual, nos grandes romances heterossexuais de nossa cultura – eu percebo o ponto onde a designação “romances heterossexuais” é imprecisa – caracteriza-se por um certo pudor e uma certa discrição que parecem contribuir para o charme dessas obras. Quando os escritores heterossexuais falam do sexo em termos muito explícitos, parecem perder um pouco desse poder misteriosamente evocador, dessa força que se encontra em um romance como Anna Karenina. É ai que, de fato, George Steiner desenvolve com muita coerência um bom número de seus ensaios. Contrastante com a prática de grandes romancistas heterossexuais, nós temos o exemplo de diversos escritores homossexuais. Penso, por exemplo, em Cocteau que em seu Livre blanc[5], bem sucedido em preservar o encantamento poético que os escritores heterossexuais alcançam por meio de alusões veladas, descrevendo os atos sexuais em termos mais realistas. Você pensa que existe uma tal diferença entre esses dois tipos de literatura? E se sim, como você a justifica?

– É uma questão muito interessante. Como eu havia dito antes, eu tenho lido, nestes últimos anos, um grande número de textos latinos e gregos que descrevem as práticas sexuais tanto de homens entre eles, quanto de homens com mulheres; eu fiquei surpreso com o extremo pudor desses textos (há, claro, algumas exceções). Tomemos um autor como Luciano. Temos aí um escritor antigo, que certamente fala da homossexualidade, mas de uma maneira quase pudica. No fim de um de seus diálogos, por exemplo, ele evoca uma cena onde um homem se aproxima de um jovem rapaz, coloca a mão sobre seu joelho, depois a desliza por sobre sua túnica e acaricia seu peito; a mão desce em seguida para o ventre do jovem homem, e neste ponto, o texto se detém[6]. Tendo a atribuir esse pudor excessivo, que em geral, caracteriza a literatura homossexual da Antiguidade, ao fato de que os homens gozassem, naquela época, em suas práticas homossexuais, de uma liberdade bem maior.

– Eu compreendo. Em suma, quanto mais as práticas sexuais são livre e francas, mais se permite falar de maneira reticente e indiretas sobre elas. Isso explicaria por que a literatura homossexual é mais explicita em nossa cultura que a literatura heterossexual. Porém, eu me perguntaria hoje se há, nesta explicação, algo que poderia justificar o fato de que a literatura homossexual consiga criar na imaginação do leitor, os efeitos que cria a literatura heterossexual ao utilizar mais precisamente os meios opostos.

– Eu poderia tentar responder sua questão, se você me permite, de outra forma. A heterossexualidade, pelo menos desde a Idade Média tem sido sempre percebida segundo dois eixos: o eixo da corte, onde o homem seduz a mulher e o eixo do ato sexual mesmo. A maior parte da literatura heterossexual do Ocidente é essencialmente preocupada com o eixo da corte amorosa, quer dizer, com tudo o que precede o ato sexual. Toda a obra de refinamento intelectual e cultural, toda a elaboração estética no Ocidente tem se voltado sempre para a corte. Isso explica que o ato sexual mesmo seja relativamente pouco apreciado, do ponto de vista literário, cultural e estético.

Por outro lado, não há nada que ligue a moderna experiência homossexual à corte. Além do mais, as coisas não se passam assim na Grécia antiga. Para os gregos, a corte entre os homens era mais importante do que a corte entre homens e mulheres (que se pense ao menos em Sócrates e Alcibíades). Mas a cultura cristã ocidental baniu a homossexualidade, a forçando a concentrar toda a sua energia no ato mesmo. Os homossexuais não podem elaborar um sistema de corte porque se lhe tem recusado a expressão cultural necessária para esta elaboração. A piscada na rua, a decisão, em uma fração de segundo, de aproveitar a aventura, a rapidez com a qual as relações homossexuais são consumadas, tudo isso é o produto de uma interdição. A partir do momento em que uma cultura e uma literatura homossexuais se iniciasse, seria natural que elas se concentrassem sobre o aspecto mais ardente e passional das relações homossexuais.

– Lembro, ao te ouvir, da célebre fórmula de Casanova: “O melhor momento, no amor, é quando se sobe as escadas”. Seria doloroso imaginar hoje essas palavras na boca de um homossexual.

– Exatamente. Um homossexual diria antes: “O melhor momento, no amor, é quando o amante se distancia no táxi”.

– Eu não posso deixar de pensar que está ai uma descrição mais ou menos precisa das relações entre Swann e Odette no primeiro volume de La Recherche[7].

– Sim, é verdade em um sentido. Porém, embora se trate de uma relação entre um homem e uma mulher, seria necessário, na descrição, ter em conta a natureza da imaginação que a concebe.

– E seria preciso também ter em consideração a natureza patológica da relação tal como Proust mesmo a concebe.

– Eu gostaria mesmo de deixar de lado, neste contexto, a questão da patologia. Eu prefiro mais simplesmente me ater à observação pela qual eu abri esta parte de nossa conversa, a saber que, para um homossexual, é provável que o melhor momento do amor é aquele onde o amante se distancia no táxi. É quando o ato está consumado e o rapaz parte, que se começa a sonhar com o calor de seu corpo, a beleza de seu sorriso, o tom de sua voz. É a lembrança, e não a antecipação do ato que importa mais nas relações homossexuais. É a razão pela qual os grandes escritores homossexuais de nossa cultura (Cocteau, Genet, Burroughs) podem descrever com tanta elegância o ato sexual: a imaginação homossexual se liga, principalmente, à lembrança do que à antecipação deste ato. E como eu disse antes, tudo isso é o produto de considerações práticas, de coisas bem concretas, que nada dizem da natureza intrínseca da homossexualidade.

– Você pensa que isso tenha alguma influência sobre a pretensa proliferação das perversões de hoje? Faço alusão a fenômenos como a cena sadomasoquista, os golden showers, as diversões escatológicas e outras coisas do mesmo gênero. Sabemos que estas práticas existem há muito tempo; mas parece que se as vive hoje de uma maneira muito mais aberta.

– Eu diria também que bem mais pessoas entregam-se a elas.

– Você pensa que este fenômeno e o fato de que a homossexualidade saia do armário, tornando pública sua forma de expressão são, de alguma forma, ligados?

– Eu arriscaria a seguinte hipótese: em uma civilização que, durante séculos, considerou-se que a essência da relação entre duas pessoas residiria no fato, de saber se uma das duas partes cederia ou não à outra, todo o interesse, toda a curiosidade, toda a audácia e a manipulação que provaram as partes em questão, sempre visaram a submissão do parceiro com a finalidade de deitar-se com ele. Hoje, quando os encontros sexuais têm se tornado extremamente fáceis e numerosos, como é o caso dos encontros homossexuais, as complicações acontecem apenas depois do ato. Nestes encontros repentinos, depois de ter feito amor, que se começa a inquirir o outro. Uma vez consumado o ato sexual, pergunta-se, então ao parceiro: “Qual é mesmo seu nome?”

Estamos na presença de uma situação em que toda a energia e a imaginação, antes canalizadas para a corte em uma relação heterossexual, se aplicam, ai, para intensificar o ato sexual. Desenvolve-se hoje toda uma nova arte da prática sexual, que tenta explorar as diversas possibilidades internas do comportamento sexual. Vemos se constituir em cidades como São Francisco e Nova Iorque, o que se pode chamar de laboratórios de experimentação sexual. Pode-se ver, em contrapartida à corte medieval, que definia regras muito estritas de propriedade no ritual da corte.

É porque o ato sexual tornou-se tão fácil e tão acessível aos homossexuais que corre o risco de tornar-se rapidamente tedioso; por isso se faz tudo o que é possível para inovar e introduzir variações que intensifiquem o prazer do ato.

– Sim, mas por que essas inovações têm tomado esta forma e não outra? De onde vem a fascinação pelas funções excretoras, por exemplo?

– Eu acho mais surpreendente o caso do sadomasoquismo. Mais surpreendente, na medida onde as relações sexuais se elaboram e se exploram através de relações míticas. O sadomasoquismo não é uma relação entre este (ou esta) que sofre e este (ou esta) que inflige o sofrimento, mas entre um senhor e a pessoa sobre a qual se exerce sua autoridade. O que interessa aos adeptos do sadomasoquismo é o fato de que a relação é ao mesmo tempo submissa às regras e aberta. Ela lembra um jogo de xadrez, onde um pode ganhar e o outro perder. O senhor pode perder, no jogo sadomasoquista, se ele se revela incapaz de satisfazer a necessidade e exigências de sofrimento de sua vítima. Da mesma forma, o escravo pode perder se ele não consegue tolerar ou não suporta o desafio lançado pelo senhor. Essa mistura de regras e de abertura tem por efeito intensificar as relações sexuais, introduzindo uma novidade, uma tensão e uma incerteza perpétuas, que é isenta na simples consumação do ato. O objetivo é usar qualquer parte do corpo como um instrumento sexual.

De fato, a prática do sadomasoquismo é ligada à expressão célebre “animal triste post coitum”. Como o coito é imediato nas relações homossexuais, o problema se torna: “O que se pode fazer para se proteger do caminho da tristeza?”

– Você veria uma explicação para o fato dos homens parecerem hoje menos dispostos a aceitar a bissexualidade das mulheres do que de outros homens?

– Isso tem, sem dúvida, a ver com o papel que as mulheres desempenham na imaginação dos homens heterossexuais. Eles as consideram, desde sempre, como sua propriedade exclusiva. Para preservar essa imagem, um homem deve impedir sua mulher de estar muito em contato com outros homens; as mulheres se viam, assim, restritas a seu contato social com as outras mulheres, o que explica que uma tolerância maior no que diz respeito às relações físicas entre as mulheres. Por outro lado, os homens heterossexuais tinha a impressão que se eles praticassem a homossexualidade, isso destruiria essa imagem que eles têm de si, junto às mulheres. Os homens pensam que as mulheres apenas experimentam prazer na condição que elas os reconheçam como senhores. Mesmo para os gregos, o fato de ser o parceiro passivo em uma relação amorosa constituía um problema. Para um membro da nobreza grega, fazer amor com um escravo passivo era natural, porque o escravo era, por natureza, inferior. Mas quando dois gregos da mesma classe social queriam fazer amor, isso colocava um verdadeiro problema pois nenhum dos dois consentia em se reduzir diante do outro.

Os homossexuais ainda hoje conhecem este problema. A maioria deles consideram que a passividade é, de uma certa forma, degradante. A prática do sadomasoquismo contribuiu, de fato, para tornar o problema menos agudo.

– Você pensa que as formas culturais que se desenvolvem na comunidade gay são, em grande medida, destinadas aos jovens membros dessas comunidades?

– Sim, em muitos casos, penso eu; mas eu não estou seguro que se possa tirar conclusões importantes daí. Certamente, é enquanto homem de cinqüenta anos que tenho a impressão que, quando leio certas publicações são feitas para e por gays, que elas não se endereçam a mim, que não há, de uma certa maneira, lugar para mim. Eu não me fundamentaria nestes fatos para criticar essas publicações, já que elas satisfazem os interesses de seus autores e de seus leitores. Mas eu não posso me impedir de observar que há uma tendência, entre os gays cultos, a considerar os grandes problemas, as grandes questões de estilo de vida interessam prioritariamente às pessoas que tem entre vinte e trinta anos.

– Eu não vejo por que isso não poderia constituir a base não somente de uma crítica de certas publicações específicas, mas também da vida gay em geral.

– Eu não disse que ai não se poderia encontrar matéria para crítica, mas somente que esta critica não me pareceria útil.

– Por que não considerar, neste contexto, o culto voltado ao jovem corpo masculino como o núcleo mesmo dos fantasmas homossexuais clássicos e falar da maneira que esse culto aciona a negação de processos vitais comuns, em particular o envelhecimento e o declínio do desejo?

– Escute, essas questões que você levanta não são novas e você o sabe. No que diz respeito ao culto voltado ao jovem corpo masculino, eu não estou totalmente convencido que isso seja específico dos homossexuais, ou que isso tenha que ser considerado como patológico. Se é isso que sua questão exprime, eu a recuso. Mas lembro a você que, além do fato de que os gays sejam necessariamente tributários de um processo vital, eles são também, na maioria dos casos, bem conscientes disso. As publicações gays talvez não consagrem tanto o lugar que eu desejaria às questões de amizade entre homossexuais ou à significação das relações de ausência de códigos ou de linhas de condutas estabelecidas; porém cada vez mais gays têm resolvido essas questões por si mesmos. E, como você sabe, eu acredito que o que embaraça mais quem não é homossexual é o estilo de vida gay e não os atos sexuais em si.

– Você faz alusão a coisas como os sinais de afeto e as carícias que os homossexuais se fazem em público ou antes à maneira chamativa que eles se vestem, ou ainda, ao fato de que eles arvoram as reuniões formais?

– Todas essas coisas apenas podem ter um efeito perturbador sobre certas pessoas. Porem, eu fazia alusão, sobretudo, ao temor comum de que os gays estabeleçam relações que, ainda que elas não se conformem em nada ao modelo de relações exaltado pelos outros, aparecendo, apesar de tudo, como intensas e satisfatórias. É esta idéia de que os homossexuais possam criar relações que não possamos ainda prever, que muitas pessoas não podem suportar.

– Você faz alusão, então, às relações que não impliquem nem a possessividade nem a fidelidade – para apenas mencionar dois fatores comuns que poderiam ser negados?

– Se não podemos prever o que serão essas relações, não podemos verdadeiramente dizer que esse ou aquele traço será negado. Porém, podemos ver no exército, por exemplo, como o amor entre homens pode nascer e se afirmar em circunstâncias onde somente o puro hábito e a regra são permitidos prevalecer. E é possível que mudanças afetem, em maiores proporções, as rotinas estabelecidas, na medida em que os homossexuais aprendam a exprimir seus sentimentos em relação uns aos outros das maneiras mais variáveis e criarem estilos de vida que não se assemelhem aos modelos institucionais.

– Você considera que seu papel seja de endereçar à comunidade gay particularmente as questões de importância geral, como as que você levantou?

– Eu tenho, habitualmente, conversas com outros membros da comunidade gay. Nós discutimos, tentamos encontrar maneiras de nos abrir uns aos outros. Porém eu me vigio para não impor minhas próprias visões, para não fixar planos ou programas. Eu não quero desencorajar a invenção, não quero que os homossexuais cessem de crer que são eles que devem regular suas próprias relações, descobrir o que serve para suas situações individuais.

– Você não pensa que haveria conselhos particulares ou uma perspectiva específica que um historiador ou um arqueólogo da cultura como você pudesse oferecer?

– É sempre útil compreender o caráter historicamente contingente das coisas, de ver como e porque as coisas se tornam o que elas são. Mas eu não sou o único que é equipado para mostrar essas coisas e quero me guardar da suposição de que certos desenvolvimentos foram necessários ou inevitáveis. Minha contribuição pode ser, eventualmente, ser útil em certos domínios, mas, ainda uma vez, eu quero evitar de impor meu sistema ou meu plano.

– Você pensa que, de uma maneira geral, os intelectuais são, em relação aos diferentes modos de comportamento sexual, mais tolerantes ou mais receptivos que as outras pessoas? Caso positivo, isso se deveria a uma melhor compreensão da sexualidade humana? Caso negativo, você pensa que você e outros intelectuais possam fazer alguma coisa para melhorar essa situação? Qual é o melhor meio de reorientar o discurso racional sobre o sexo?

– Eu penso que em matéria de tolerância, nós sustentamos numerosas ilusões. Tome o incesto, por exemplo. O incesto tem sido, durante muito tempo, uma prática popular – entendo por isso uma prática muito difundida entre o povo. Até o fim do séc. XIX, diversas pressões sociais começaram a se exercer contra o incesto. É claro que a grande interdição ao incesto é uma invenção dos intelectuais.

– Você quer dizer figuras como Freud e Lévi-Strauss ou pensa na classe intelectual em seu conjunto?

– Não, eu não viso uma pessoa em particular. Eu chamo sua atenção sobre o fato de que, se você pesquisa na literatura do séc. XIX estudos sociológicos ou antropológicos sobre o incesto, você não vai encontrar. Existe antes, aqui e ali, algumas relações médicas e outras, mas parece que a prática do incesto não tem um verdadeiro lugar de problema, na época.

Sem dúvida, esses assuntos são abordados mais abertamente entre os melhores intelectuais, mas isso não é sinal de uma tolerância maior. Isso, as vezes, indica o contrário. Há dez ou quinze anos, quando eu freqüentava o meio burguês, eu me lembro que era raro uma reunião sem que se abordasse a questão da homossexualidade e da pederastia – afinal, não se esperava mesmo a sobremesa. Mas essas mesmas pessoas que abordavam abertamente essas questões provavelmente não admitiriam jamais a pederastia de seus filhos.

Quanto a prescrever a orientação que devem tomar um discurso racional sobre o sexo, eu prefiro não legislar sobre esse assunto; por uma razão: a expressão “discurso intelectual sobre o sexo” é muito vaga. Certos sociólogos, sexólogos, psiquiatras, médicos e moralistas têm propostas muito estúpidas – assim como outros membros dessas mesmas profissões têm propostas inteligentes. A questão, em minha opinião, não é sobre um discurso intelectual sobre o sexo, mas de um discurso estúpido e de um discurso inteligente.

– Eu compreendi que o senhor descobriu, há pouco tempo, um certo numero de obras que progridem em uma boa direção.

– É verdade, mais do que eu podia imaginar há alguns anos. Mas no conjunto, a situação é menos que encorajadora.

(entrevista com J. O’Higgins; trad. F. Durant-Bogaert). Salmagundi, n. 58-59: Homosexuality: Sacrilege, Vision, Politics, automne-hiver 1982, pp. 10-24.

v Traduzido a partir de FOUCAULT, Michel. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, pp. 320-335 por Wanderson Flor do Nascimento.


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[1] Boswell (J.), Christianity, Social Tolerance and Homosexuality: Gay People in Western Europe from the Beginning of the Christian Era to the Fourteenth Century. Chicago: The University of Chicago Press, 1980.

[2] Alusão à frase de Freud: "Eu lhe expliquei um dia que eu não devia confiar nesses sonhos, pois eles são mentirosos". Em "Sur la psychogenèse d'un cas d'homosexualité féminine", 1920, Névrose, Psychose Perversion. P.U.F., 1973, p.264.

[3] RIVERS (J. C.). Proust and the Art of Loving: The Aesthetics of Sexuality in the Life, Times and Art of Marcel Proust. New York: Columbia University Press, 1980.

[4] Rieff, P. “The Impossible Culture”, Salmagundi, nos 58-59: Homosexuality: Sacrilege, Vision, Politics, autonome 1982-hiver pp. 406-426.

[5] Cocteau, J. Le Livre blanc. Paris: Sachs et Bonjean, 1928.

[6] Lucien. Dialogues des courtisanes. (trad. E. Talbot). Paris: Jean-Claud Lettès, 1979.

[7] Proust, M. À la recherche du temps perdu. t. I: Du cote chez Swann, 2e partie: une amour de Swann. Paris: Ed. De la Nouvelle Revue française, 1929.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Mês de Novembro, olhando para 2013!

De novembro, o que há de melhor é que dezembro vem aí....já começo a pensar em como foi o ano que passou, o que quero para o próximo ano, se é que quero realmente alguma coisa.

2012 tem o crime imperdoável de nos ter tirado a Teresa, a Teresoca, a Tetê...preciso urgente de um Levandowski na minha vida para que as coisas boas que aconteceram no ano não sejam penalizadas tão fortemente pela perda de nossa melhor amiga.

Comprei minha sala, o atelier deve estar pronto em meados de janeiro, correndo tudo bem (isto significa que o pedreiro tem de beber um pouco menos e trabalhar mais, o marceneiro entregar as peças a tempo, não faltar material no revendedor que recebeu adiantado, a pedra da pia ser furada no lugar certo, e uma ou outra coisinha!!). Mas não se escutarão os passos arrastados de Teresa subindo as escadas, queixando-se do coração, que, cansado mas não traiçoeiro, resolveu descansar antes dela.....
.
Conseguimos arrancar  um dinheirinho bastante bom da United, pelo tratamento indecoroso que nos proporcionou quando tivemos um problema provocado apenas por ela em Nova Iorque. Demorou, a justiça brasileira não merece maiúsculas, mas nos indenizaram em uma quantidade suficiente para não nos importarmos mais de sermos chamados de mentirosos pelos advogados da United. Um caso típico de bem-feito!!Bastaria um email se desculpando, United!! Mas a Teresa não chegará em casa, furibunda e furiosa, reclamando da Tim, da Claro, do serviço público, dos transportes...e os táxis do Rio deixaram de ter um controle de qualidade muito competente...

Convivemos bastante com a Carolina, minha irmã, embora eu tenha certeza de que ela se rebelará contra o advérbio "bastante" (é advérbio mesmo?), fomos viajar com amigos, o que nos ensinou, de forma às vezes dolorosa, às vezes divertida, que nosso aproach em turismo é mesmo solitário. Somos eu e Alberto contra o mundo e vamos dando conta da batalha, sem ajuda...rs...Mas a Teresa não fará sua viagem, tão sonhada, à Europa e planejada nos mínimos detalhes!!Perde Paris, já que ficará sem os comentários saborosos da Tetê!! Recebemos os guias de volta e ficamos olhando para eles, sem a função que nos faria mais felizes. Paris , de agora em diante, tem mais este peso para carregar, mas também a alegria de ter a Teresoca para sempre por lá, onde estão (parte de ) suas cinzas.

Na verdade, foi um ano muito positivo, comprei minha sala para que o atelier que sempre sonhei possa tomar forma, acertei algumas pendências da vida e fui criando outras, para que tudo não exibisse a monotonia dos certinhos e regulados. Mas nos falta a Teresa para bagunçar os conceitos com as incoerências e inconstâncias que nos divertiam tanto.

Meus cursos de encadernação me levaram até a Prof Marisa Garcia de Souza (tem o "de" aí, Marisa?), uma professora cuidadosa, exigente, que provoca estímulos muito positivos no aprender da encadernação. Não tenho agradecimentos também por ela ter me apresentado a Estela Villela, outra professora cuidadosa e gentil, cheia da sabedoria de transmitir, o que não é pouco!! E à Gabriela, Rosa e Mônica, os agradecimentos que nunca serão suficientes para dizer da minha admiração e gratidão pela generosidade de terem partilhado seus conhecimentos comigo. Mas não teremos mais a Teresoca nos ensinando a beber Negroni, a comprar a melhor salada de frutas e o melhor pão, enfim, não teremos mais nossa "caga goma" favorita!!!


2012, então, fica nos devendo esta! Espero que 2013 seja tão bom quando 2012, apesar desta desfeita, foi!! Aproveito os dias de muito para agradecer pelos dias de pouco, que sempre foi suficiente. E espero, do fundo do coração, que o consolo que procuramos pela falta que a Teresa nos faz esteja mais à mão do que conseguimos perceber, quatro meses depois de sua ida para as pradarias divinas...A vida segue, é claro, mas temos que admitir que, a partir de agosto, segue incompleta!!

Feliz 2013!!!

Mário de Sá-Carneiro



Ápice

O raio de sol da tarde
que uma janela perdida
refletiu
num instante indiferente -
arde,
numa lembraça esvaída,
À minha memória de hoje
subitamente...

seu efêmero arrepio
zig-zagueia, ondula, foge,
pela minha retentiva...
-e não poder adivinhar
por que mistério se me evoca
esta idéia fugitiva,
tão débil que mal me toca!...

-Ah! não sei por quê, mas certamente
aquele raio cadente
alguma coisa foi na minha sorte
que a sua projeção atravessou...

Tanto segredo no destino de uma vida...

É como a ideia de Norte,
Preconcebida,
que sempre me acompanhou....

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Rimbaud e Paul Verlaine



 To the Asshole

Dark, puckered hole: a purple carnation
That trembles, nestled among the moss (still wet
with love) covering the gentle curvation
of the white ass, just to the royal eyelet.
Threads resembling milky tears there are spun;
Spray forced back by the south wind's cruel threat
Across the small balls of brown shit has run,
To drip from the crack, which craves for it yet.

Not wishing the prick to have its bent,
My mouth too has often mated with that vent,
My sobbing tongue tried to devour the rose
Flowering in brown moisture. The chute unmanned,
It's a heavenly jam-pot, the Promised Land
Which with other milk and honey overflows!

A.Rimbaud e P. Verlaine, de "Penguin Book of Homosexual Verse, p. 235
Foto: ânus

Este soneto foi escrito depois do episódio da junta médica...do que estou falando?Ué, Googlem aí...ou vejam o filme Eclipse de uma Paixão, tá lá...não sei se tem em DVD, sorry...

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Ana Cristina César




A Ponto de Partir


A ponto de
partir, já sei
que nossos olhos
sorriam para sempre
na distância.
Parece pouco?
Chão de sal grosso, e ouro que se racha.
A ponto de partir, já sei que nossos olhos sorriem na distância.
Lentes escuríssimas sob os pilotis.


Ana Cristina César matou-se. Está morta, mesmo...como pode???

quinta-feira, 29 de novembro de 2012

D.H. Lawrence

O Figo
A maneira correcta de comer um figo à mesa
É parti-Io em quatro, pegando no pedúnculo,
E abri-Io para dele fazer uma flor de mel, brilhante, rósea, húmida,
desabrochada em quatro espessas pétalas.

Depois põe-se de lado a casca
Que é como um cálice quadrissépalo,
E colhe-se a flor com os lábios.
Mas a maneira vulgar
É pôr a boca na fenda, e de um sorvo só aspirar toda a carne.

Cada fruta tem o seu segredo.
O figo é uma fruta muito secreta.
Quando se vê como desponta direito, sente-se logo que é simbólico:
Parece masculino.
Mas quando se conhece melhor, pensa-se como os romanos que é
uma fruta feminina.

Os italianos apelidam de figo os órgãos sexuais da fêmea:
A fenda, o yoni,
Magnífica via húmida que conduz ao centro.
Enredada,
Inflectida,
Florescendo toda para dentro com suas fibras matriciais;
Com um orifício apenas.

D.H.Lawrence
(tradução de Herberto Helder)


e, para surpresa do Pedro Malanski, o original, o que talvez explique minha predileção pela forma em que o poema foi concebido....

Figs



The proper way to eat a fig, in society,
Is to split it in four, holding it by the stump,
And open it, so that it is a glittering, rosy, moist, honied, heavy-petalled four-petalled flower.
 
Then you throw away the skin
Which is just like a four-sepalled calyx,
After you have taken off the blossom, with your lips.
 
But the vulgar way
Is just to put your mouth to the crack, and take out the flesh in one bite.
 
Every fruit has its secret.
 
The fig is a very secretive fruit.
As you see it standing growing, you feel at once it is symbolic :
And it seems male.
But when you come to know it better, you agree with the Romans, it is female.
 
The Italians vulgarly say, it stands for the female part ; the fig-fruit :
The fissure, the yoni,
The wonderful moist conductivity towards the centre.
 
Involved,
Inturned,
The flowering all inward and womb-fibrilled ;
And but one orifice.
 
The fig, the horse-shoe, the squash-blossom.
Symbols.
 
There was a flower that flowered inward, womb-ward ;
Now there is a fruit like a ripe womb.
 
It was always a secret.
That’s how it should be, the female should always be secret.
 
There never was any standing aloft and unfolded on a bough
Like other flowers, in a revelation of petals ;
Silver-pink peach, venetian green glass of medlars and sorb-apples,
Shallow wine-cups on short, bulging stems
Openly pledging heaven :
Here’s to the thorn in flower ! Here is to Utterance !
The brave, adventurous rosaceæ.
 
Folded upon itself, and secret unutterable,
And milky-sapped, sap that curdles milk and makes ricotta,
Sap that smells strange on your fingers, that even goats won’t taste it ;
Folded upon itself, enclosed like any Mohammedan woman,
Its nakedness all within-walls, its flowering forever unseen,
One small way of access only, and this close-curtained from the light ;
Fig, fruit of the female mystery, covert and inward,
Mediterranean fruit, with your covert nakedness,
Where everything happens invisible, flowering and fertilization, and fruiting
In the inwardness of your you, that eye will never see
Till it’s finished, and you’re over-ripe, and you burst to give up your ghost.
 
Till the drop of ripeness exudes,
And the year is over.
 
And then the fig has kept her secret long enough.
So it explodes, and you see through the fissure the scarlet.
And the fig is finished, the year is over.
 
That’s how the fig dies, showing her crimson through the purple slit
Like a wound, the exposure of her secret, on the open day.
Like a prostitute, the bursten fig, making a show of her secret.
 
That’s how women die too.
 
The year is fallen over-ripe,
The year of our women.
The year of our women is fallen over-ripe.
The secret is laid bare.
And rottenness soon sets in.
The year of our women is fallen over-ripe.
 
When Eve once knew in her mind that she was naked
She quickly sewed fig-leaves, and sewed the same for the man.
She’d been naked all her days before,
But till then, till that apple of knowledge, she hadn’t had the fact on her mind.
 
She got the fact on her mind, and quickly sewed fig-leaves.
And women have been sewing ever since.
But now they stitch to adorn the bursten fig, not to cover it.
They have their nakedness more than ever on their mind,
And they won’t let us forget it.
 
Now, the secret
Becomes an affirmation through moist, scarlet lips
That laugh at the Lord’s indignation.
 
What then, good Lord ! cry the women.
We have kept our secret long enough.
We are a ripe fig.
Let us burst into affirmation.
 
They forget, ripe figs won’t keep.
Ripe figs won’t keep.
 
Honey-white figs of the north, black figs with scarlet inside, of the south.
Ripe figs won’t keep, won’t keep in any clime.
What then, when women the world over have all bursten into affirmation ?
And bursten figs won’t keep ?

D.H.Lawrence ficou muito famoso pelo "O AMante de Lady Chatterley", mas à época já era um poeta muito conceituado. Sua história de vida daria um livro e /ou um filme ótimos, que continuo esperando alguém fazer.
A Vintage Books tem uma edição gigantesca de toda a poesia de DH. Não sei se vale a pena, mas vale a pena...

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Eugénio de Andrade



Poetas portugueses, eles têm esses nomes acentuados em lugares estranhos para nós, brasileiros... e insistem em nos manter distantes, nosso mercado editorial, por alguma razão, não nos descortina as maravilhas que não exigem dicionários nem interpretações, apenas a possibilidade do sentimento atingido. Nessas horas, agradeço muito às antologias de poesia portuguesa, capaz de nos desvendar esses mistérios tão à nossa disposição e tão ignorados.
                

Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.

Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como um bosque.

É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.

Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.

(em As Palavras Interditas)

e também:


Sobre a Palavra


Entre a folha branca e o gume do olhar
a boca envelhece

Sobre a palavra
a noite aproxima-se da chama

Assim se morre dizias tu
Assim se morre dizia o vento acariciando-te a cintura

Na porosa fronteira do silêncio
a mão ilumina a terra inacabada
Interminavelmente

(em Véspera da Água)


domingo, 25 de novembro de 2012

Cora Coralina


Velho Sobrado

Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.

Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda perfilado, um pé de mamão macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
-um muro.

Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas
de ferro forjado,
cede.

Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobrado dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados - passantes e vizinhos.
Aos poucos, a "fortaleza" desabando.

Quem se lembra?
Quem se esquece?

Padre Vicente JOsé Vieira.
D. Irena Manso Serradourada.
D. Virgínia Vieira
-grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamin Vieira.
Rodolfo Luz Vieira,
Ludugero,
Angela, Débora, Maria...
tão distante a gente do sobrado...

Bailes e saraus antigos
Cortesia. Sociedade goiana.
Senhoras e cavaleiros...-
tão desusados...

O Passado...

A escadaria de patamares
vai subindo..subindo...
Portas no alto.
À direita. à esquerda.
Se abrindo, familiares.

Salas. Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes, forradas de papel, desenhos de querubins, segurando
cornucópia e laços.
Retratos dos antepassados,
solenes, empertigados,
gente de dantes.

Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando jarrões pesados.
Antigas flores de que ninguém mais fala!!
Rosa cheirosa de Alexandria.
]Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim do cabo. Resedá.
Um aroma esquecido
-majerona.

O Passado

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano".
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando ideias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
]O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia. Benjamin.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos,
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do passado.



sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Agradecer...


The Thanksgivings



Translated from a traditional Iroquois prayer 

We who are here present thank the Great Spirit that we
   are here to praise Him.
We thank Him that He has created men and women, 
   and ordered that these beings shall always be 
   living to multiply the earth.
We thank Him for making the earth and giving these 
   beings its products to live on.
We thank Him for the water that comes out of the earth 
   and runs for our lands.
We thank Him for all the animals on the earth.
We thank Him for certain timbers that grow and have 
   fluids coming from them for us all.
We thank Him for the branches of the trees that grow 
   shadows for our shelter.
We thank Him for the beings that come from the west, 
   the thunder and lightning that water the earth.
We thank Him for the light which we call our oldest 
   brother, the sun that works for our good.
We thank Him for all the fruits that grow on the trees 
   and vines.
We thank Him for his goodness in making the forests, 
   and thank all its trees.
We thank Him for the darkness that gives us rest, and 
   for the kind Being of the darkness that gives us light, 
   the moon.
We thank Him for the bright spots in the skies that give 
   us signs, the stars.
We give Him thanks for our supporters, who had charge 
   of our harvests.
We give thanks that the voice of the Great Spirit can 
   still be heard through the words of Ga-ne-o-di-o.
We thank the Great Spirit that we have the privilege of 
   this pleasant occasion.
We give thanks for the persons who can sing the Great Spirit's music, and hope they will be privileged to continue in his faith.
We thank the Great Spirit for all the persons who 
   perform the ceremonies on this occasion.


A tradução para o inglês foi feita por Harriet Maxwell Converse, que se dedicou a estudar a civilização iroquois dos EUA... Posso ser eu, mas dá uma tristeza...

A foto é da Bandeira da Confederação Iroquois... insistem em sobreviver, que coisa!!

quinta-feira, 22 de novembro de 2012


Twenty Questions

Did I forget to look at the sky this morning
when I first woke up? Did I miss the willow tree?
The white gravel road that goes up from the cemetery,
but to where? And the abandoned house on the hill, 
   did it get
even a moment? Did I notice the small clouds so slowly
moving away? And did I think of the right hand
of God? What if it is a slow cloud descending
on earth as rain? As snow? As shade? Don't you think
I should move on to the mop? How it just sits there, 
   too often
unused? And the stolen rose on its stem?
Why would I write a poem without one?
Wouldn't it be wrong not to mention joy? Sadness,
its sleepy-eyed twin? If I'd caught the boat
to Mykonos that time when I was nineteen
would the moon have risen out of the sea
and shone on my life so clearly
I would have loved it
just as it was? Is the boat
still in the harbor, pointing
in the direction of the open sea? Am I
still nineteen? Going in or going out,
can I let the tide make of me
what it must? Did I already ask that?

Jim Moore é autor de seis livros de poesia, incluindo Lightning at DinnerThe Freedom of History, and The Long Experience of Love. É americano, seus poemas são muito divulgados por lá. Por aqui, o de sempre. Ou você corre (muito) atrás ou fica sem notícias do mundo civilizado. Eu sei que meu querido Pedro Malanki não gosta muito de poesia em outros idiomas, mas é que eu não gosto de poesia traduzida, mas gosto do Pedro, então, sempre que posto algo no original, eu me lembro dele. Mas será que ele lê o que eu posto aqui? Fica a pergunta, mais uma....

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Roberto Piva


Morreu há pouco!Tem um livro maravilhoso com o Wesley Duke Lee, seus poemas foram relançados em três volumes, os quais estou encadernando e fazendo um etui, que é para durar a eternidade que eles merecem. Já postei antes, acho que postarei sempre...dias chuvosos, notícias tristes, falta de perspectiva....mas lá no fim do túnel, brilha a luz da bala de fuzil que porá fim a teu sofrimento....

para Sérgio Cohn

eu caminho seguindo
o sol
sonhando saídas
definitivas da
   cidade-sucata

isto é possívelo
num dia de
visceral beleza
quando o vento
feiticeiro
tocar o navio pirata
da alma
a quilômetros da alegria

(Ponto Chic, 95)

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

Lord Byron




Epitaph to a Dog

Near this Spot
are deposited the Remains of one
who possessed Beauty without Vanity,
Strength without Insolence,
Courage without Ferosity,
and all the virtues of Man without his Vices.
This praise, which would be unmeaning Flattery
if inscribed over human Ashes,
is but a just tribute to the Memory of
BOATSWAIN, a DOG,
who was born in Newfoundland May 1803
and died at Newstead Nov. 18th, 1808.


When some proud Son of Man returns to Earth,
Unknown to Glory but upheld by Birth,
The sculptor's art exhausts the pomp of woe,
And storied urns record who rests below:
When all is done, upon the Tomb is seen
Not what he was, but what he should have been.
But the poor Dog, in life the firmest friend,
The first to welcome, foremost to defend,
Whose honest heart is still his Master's own,
Who labours, fights, lives, breathes for him alone,
Unhonour'd falls, unnotic'd all his worth,
Deny'd in heaven the Soul he held on earth:
While man, vain insect! hopes to be forgiven,
And claims himself a sole exclusive heaven.
Oh man! thou feeble tenant of an hour,
Debas'd by slavery, or corrupt by power,
Who knows thee well, must quit thee with disgust,
Degraded mass of animated dust!
Thy love is lust, thy friendship all a cheat,
Thy tongue hypocrisy, thy heart deceit!
By nature vile, ennobled but by name,
Each kindred brute might bid thee blush for shame.
Ye! who behold perchance this simple urn,
Pass on, it honors none you wish to mourn.
To mark a friend's remains these stones arise;
I never knew but one-and here he lies.

Eu e os cachorros, nós temos uma relação bastante boa...meio neurótica de minha parte, mas em geral funcionamos bem. Fuçando, encontrei este poema dedicado aos cães. Daí achei que cabia postar.

domingo, 18 de novembro de 2012

Mário de Andrade


Mário de Andrade (09/10/1893 - 25/02/1945) nasceu em São Paulo. Foi poeta, romancista, crítico de arte é considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos brasileiros.Pauliceia Desvairada foi publicado em 1922, é a primeira obra de vanguarda literária do país. Seus relatos de viagem são deliciosos e o livro "O Turista Aprendiz" sempre foi um dos meus favoritos. E o livro "Estrela da Vida Inteira" é um dos favoritos da Marinha, com méritos.
No poema ele analisa a cidade de São Paulo e seus elementos: sociedade, burguesia, Rio Tietê, Avenida Paulista. Esta obra de Mário de Andrade continua sendo inquietante e ousada.

Ode ao burguês
Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,
o burguês-burguês!
A digestão bem feita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre um cauteloso pouco-a-pouco!
Eu insulto as aristocracias cautelosas!
os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro de muros sem pulos,
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam os "Printemps" com as unhas!
Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas à chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!
Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suissa! Morte viva ao Adriano!
"_ Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
_ Um colar... _ Conto e quinhentos!!!
Mas nós morremos de fome!"
Come! Come-te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!
Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte à infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!
Todos para a Central do meu rancor inebriante!
Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Jack Gilbert



Failing and Flying
by Jack Gilbert

Everyone forgets that Icarus also flew.
It's the same when love comes to an end,
or the marriage fails and people say
they knew it was a mistake, that everybody
said it would never work. That she was
old enough to know better. But anything
worth doing is worth doing badly.
Like being there by that summer ocean
on the other side of the island while
love was fading out of her, the stars
burning so extravagantly those nights that
anyone could tell you they would never last.
Every morning she was asleep in my bed
like a visitation, the gentleness in her
like antelope standing in the dawn mist.
Each afternoon I watched her coming back
through the hot stony field after swimming,
the sea light behind her and the huge sky
on the other side of that. Listened to her
while we ate lunch. How can they say
the marriage failed? Like the people who
came back from Provence (when it was Provence)
and said it was pretty but the food was greasy.
I believe Icarus was not failing as he fell,
but just coming to the end of his triumph.

Poxa, eu fiquei superemocionado quando li este poema.  A frase inicial e o período final resumem, de certa forma, a minha filosofia de vida, mais ou menos como encarar a trajetória de Ulisses não do ponto de vista do viajante, mas do observador. Os resultados importam, é claro, mas o percurso é que define quem você é. Fins, meios, tudo isto já gerou muita discussão e, francamente, gerou um verso absolutamente maravilhoso: "the gentelness in her like antelope standing in the dawn mist." Pode não ser sempre, mas quando é marca sua vida e é importante que estas marcas sejam valorizadas, independente da cicatriz que provocam.
E eu, fora da vida imaginada pelos poetas, ouvi a frase sobre Provence exatamente como está escrita aí. Perdeu-se muito por apegar-se ao pouco. Domage!!

Ah! Jack Gilbert! Poeta americano, recém-morto (ué, não tem recém-nascido?) dia 12/11....escreveu coisas lindas, que podem ser encontradas em Refusing Heaven, The Great Fires: Poems, 1982-1992 e The Dance Most of All: Poems. Em Português??Não sei de nada, nem em coletâneas.

desenho da linda, maravilhosa, Ana Escorse.