domingo, 25 de novembro de 2012

Cora Coralina


Velho Sobrado

Um montão disforme. Taipas e pedras,
abraçadas a grossas aroeiras,
toscamente esquadriadas.
Folhas de janelas.
Pedaços de batentes.
Almofadados de portas.
Vidraças estilhaçadas.
Ferragens retorcidas.

Abandono. Silêncio. Desordem.
Ausência, sobretudo.
O avanço vegetal acoberta o quadro.
Carrapateiras cacheadas.
São-caetano com seu verde planejamento,
pendurado de frutinhas ouro-rosa.
Uma bucha de cordoalha enfolhada,
berrante de flores amarelas
cingindo tudo.
Dá guarda perfilado, um pé de mamão macho.
No alto, instala-se, dominadora,
uma jovem gameleira, dona do futuro.
Cortina vulgar de decência urbana
defende a nudez dolorosa das ruínas do sobrado
-um muro.

Fechado. Largado.
O velho sobrado colonial
de cinco sacadas
de ferro forjado,
cede.

Bem que podia ser conservado,
bem que devia ser retocado,
tão alto, tão nobre-senhorial.
O sobrado dos Vieiras
cai aos pedaços,
abandonado.
Parede hoje. Parede amanhã.
Caliça, telhas e pedras
se amontoando com estrondo.
Famílias alarmadas se mudando.
Assustados - passantes e vizinhos.
Aos poucos, a "fortaleza" desabando.

Quem se lembra?
Quem se esquece?

Padre Vicente JOsé Vieira.
D. Irena Manso Serradourada.
D. Virgínia Vieira
-grande dama de outros tempos.
Flor de distinção e nobreza
na heráldica da cidade.
Benjamin Vieira.
Rodolfo Luz Vieira,
Ludugero,
Angela, Débora, Maria...
tão distante a gente do sobrado...

Bailes e saraus antigos
Cortesia. Sociedade goiana.
Senhoras e cavaleiros...-
tão desusados...

O Passado...

A escadaria de patamares
vai subindo..subindo...
Portas no alto.
À direita. à esquerda.
Se abrindo, familiares.

Salas. Antigos canapés.
Cadeiras em ordem.
Pelas paredes, forradas de papel, desenhos de querubins, segurando
cornucópia e laços.
Retratos dos antepassados,
solenes, empertigados,
gente de dantes.

Grandes espelhos de cristal,
emoldurados de veludo negro.
Velhas credências torneadas
sustentando jarrões pesados.
Antigas flores de que ninguém mais fala!!
Rosa cheirosa de Alexandria.
]Sempre-viva. Cravinas.
Damas-entre-verdes.
Jasmim do cabo. Resedá.
Um aroma esquecido
-majerona.

O Passado

O salão da frente recende a cravo.
Um grupo de gente moça
se reúne ali.
"Clube Literário Goiano".
Rosa Godinho.
Luzia de Oliveira.
Leodegária de Jesus,
a presidência.

Nós, gente menor,
sentadas, convencidas, formais.
Respondendo à chamada.
Ouvindo atentas a leitura da ata.
Pedindo a palavra.
Levantando ideias geniais.

Encerrada a sessão com seriedade,
passávamos à tertúlia.
]O velho harmônio, uma flauta, um bandolim.
Músicas antigas. Recitativos.
Declamavam-se monólogos.
Dialogávamos em rimas e risos.

D. Virgínia. Benjamin.
Rodolfo. Ludugero.
Veros anfitriões.
Sangrias. Doces. Licor de rosa.

O Passado...

Homens sem pressa,
talvez cansados,
descem com leva
madeirões pesados,
lavrados por escravos
em rudes simetrias,
do tempo das acutas.
Inclemência.
Caem pedaços na calçada.
Passantes cautelosos,
desviam-se com prudência.
Que importa a eles o sobrado?

Gente que passa indiferente,
olha de longe,
na dobra das esquinas,
as traves que despencam.
-Que vale para eles o sobrado?

Quem vê nas velhas sacadas
de ferro forjado
as sombras debruçadas?
Quem é que está ouvindo
o clamor, o adeus, o chamado?...
Que importa a marca dos retratos na parede?
Que importam as salas destelhadas,
e o pudor das alcovas devassadas...
Que importam?

E vão fugindo do sobrado,
aos poucos,
os quadros do passado.



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