terça-feira, 28 de junho de 2016

Um anjo...

Menotti Del Picchia, poeta...profícuo, mil coisas... fundou o grupo A Anta. Hoje, seria motivo de risos. Esse poema, acho lindo e muito tocante. Aproveitem.



O VOO

Goza a euforia do vôo do anjo perdido em ti
Não indagues se nossas estradas, tempo e vento
desabam no abismo
que sabes tu do fim ?
Se temes que o teu mistério seja uma noite,
enche-a de estrelas.
Conserva a ilusão de que o teu vôo te leva
sempre para o mais alto.
No deslumbramento da ascensão,
se pressentires que amanhã estarás mudo,
esgota, como um pássaro,
as canções que tens na garganta.
Canta, canta para conservar uma ilusão
de festa e vitória.
Talvez as canções adormeçam as feras
que esperam devorar o pássaro.
Desde que nasceste,
não és mais que um vôo no tempo.
Rumo aos céus ? O que importa a rota ?
Voa e canta,
enquanto resistirem as tuas asas.

Versão que anda pela Internet, então não sei se está tudo como deve.  Menotti escreveu também Juca Mulato, talvez fosse hoje demonizado pelos patrulhinhas deplantão.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Fênix apunhalada!

Há alguns anos, postei esta carta de Flaubert. Ingênuo, achei que, com o tempo, ela perderia o sentido e meu desencanto com o mundo seria menos doloroso para a alma, em algum momento do futuro. Ilusão! O futuro chegou e a desilusão só fez aumentar!

Então, repito o post para que a esperança, essa fênix absurda que nos habita, tente mais uma vez renascer.

Grãos de Areia

Flaubert escreveu em 1857 uma cartinha para MMle de Chantepie,onde se pode ler:

"As pessoas ligeiras, superficiais, os espíritos presunçosos e entusiastas
querem uma conclusão em todas as coisas; eles buscam a finalidade da
vida e a dimensão do infinito. Eles tomam na mão, na sua pobre
mãozinha, um punhado de areia e dizem ao oceano: "Eu vou contar os grãos
das tuas margens!" Mas, como os grãos lhes correm por entre os dedos,
ai, e como o cálculo é longo, eles batem com o pé no chão e choram.
Você sabe o que há para fazer na margem do oceano? Ajoelhar-se ou
passear!!! Passeie!!"

Não, não é para tirar nenhum conclusão em relação aos oceanos que ora atravessamos, é apenas para achar lindo
!

En français:

"Les gens légers, bornés, les esprits présomptueux et enthousiastes
veulent en toute chose une conclusion ; ils cherchent le but de la vie
et la dimension de l'infini. Ils prennent dans leur pauvre petite main
une poignée de sable et ils disent à l'Océan : "Je vais compter les
grains de tes rivages." Mais comme les grains leur coulent entre les
doigts et que le calcul est long, ils trépignent et ils pleurent.
Savez-vous ce qu'il faut faire sur la grève ? Il faut s'agenouiller ou
se promener. Promenez-vous."

Você tem passeado ou seus joelhos estão esfolados?

quarta-feira, 8 de junho de 2016

Murilo Mendes, melhor que M&M



Uma edição linda, da finada Cosac, com fotos, ensaios, uma encadernação diferenciada. Se você gosta do gênero,  provavelmente já tem. Dados, biografia, tem aos montes pela rede, é só se interessar. Aqui, um poema dele que eu acho divino, maravilhoso. Espero que vc também.

Poema Dialético

I

Todas as coisas ainda se encontram em esboço
Tudo vive em transformação
Mas o universo marcha
Para a arquitetura perfeita.

Retiremos das árvores profanas
A vasta lira antiga.
Sua secreta música
Pertence ao ouvido e ao coração de todos.
Cada novo poeta que nasce
Acrescenta-lhe uma corda.

II


Uma vida iniciada há mil anos atrás
Pode ter seu complemento e plenitude
Numa outra vida que floresce agora.

Nada poderá se interromper
Sem quebrar a unidade.

Um germe foi criado no princípio
Para que se desdobre em plenos múltiplos.
Nossos suspiros, nossos anseios, nossas dores
São gravados no campo do infinito
Pelo espírito sereníssimo que preside às gerações.

III


A muitos só lhes resta o inferno.
Que lhes coube na monstruosa partilha da vida
Senão um desespero sem nobreza, e a peste da alma?
Nunca ouviram a música nascer do farfalhar das árvores,
Nem assistiram à contínua anunciação
E ao contínuo parto das belas formas.
Nunca puderam ver a noite chegar sem elementos de terror.
Caminham conduzindo o castigo e a sombra de seus atos.
Comeram o pó e beberam o próprio suor.
Não se banharam no regato livre...

Entretanto, a transfiguração precede a morte.
Cada um deve realiza-la na sua carne e no seu espírito
Para que a alegria seja completa e definitiva.

IV


É necessário conhecer seu próprio abismo
E polir incessantemente o candelabro que o esclarece.

Tudo no universo marcha, e marcha para esperar:
Nossa existência é uma vasta expectação
Onde se tocam o princípio e o fim.
A terra terá que ser retalhada entre todos
E restituída um dia à sua antiga harmonia.
Tudo marcha para a arquitetura perfeita.
A aurora é coletiva.



Para o revisor, tem ali o >> há mil anos atrás>> mas isso acontece e pode ser usado. Para quem quiser saber, está na página 112 do livro, edição 2015.

A foto é de uma mesa de canto, de um sítio de design, que não registrei. Sabendo, coloque em comentários que eu registro na legenda.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Alberto de Lacerda

Mais um poeta das terras lusitanas, ainda aguardando a caravela que nos levará ao conhecimento e desfrute de tudo de bom que se produz alentejo e além.
Hoje é sexta, e o poema tem tudo a ver... ouvir, cheirar e escutar!

Desfrutem!


To Night
Esta noite vou embebedar os meus navios
rasgar os meus poemas
e as minhas raras (raríssimas)
cartas de amor.

Esta noite vou ser horrível
pior do que o costume
vou desabobadar os ceús da minha esperança
viga por viga estrela por estrela

Esta noite vou embebedar os meus navios
vou deixar de falar a imensa gente
vou encontrar um sábio chinês
que me recitará poemas muito simples
insuportáveis de tão belos

esta noite vou destruir mapas antigos
abrir certas janelas e quebrar
a possibilidade de alguém mais entrar na minha vida.

Esta noite vou pedir perdão aos meus amigos
e escrever uma última carta sem a mínima sombra de sentimentalismo

Esta noite vou embebedar os meus navios

(do livro Palácio)