terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Fagundes Varela



Estudei no primário, pode uma coisa dessas? Era preciso saber português, ter um vocabulário razoável, a escola daqueles tempos era para formar, não formatar. Tudo isto provocado pela palavra "caminheiro", que me remeteu a Castro Alves (outro obrigatório na escola..."Caminheiro que passa pela estrada, seguindo pelo rumo do sertão, quando vires a cruz abandonada, deixe-a dormir em paz na solidão...) e ao Fagundes Varela.

Névoas

Nas horas tardias que a noite desmaia 
Que rolam na praia mil vagas azuis, 
E a lua cercada de pálida chama 
Nos mares derrama seu pranto de luz, 

Eu vi entre os flocos de névoas imensas, 
Que em grutas extensas se elevam no ar, 
Um corpo de fada — sereno, dormindo, 
Tranqüila sorrindo num brando sonhar. 

Na forma de neve — puríssima e nua — 
Um raio da lua de manso batia, 
E assim reclinada no túrbido leito 
Seu pálido peito de amores tremia. 

Oh! filha das névoas! das veigas viçosas, 
Das verdes, cheirosas roseiras do céu, 
Acaso rolaste tão bela dormindo, 
E dormes, sorrindo, das nuvens no véu? 

O orvalho das noites congela-te a fronte, 
As orlas do monte se escondem nas brumas, 
E queda repousas num mar de neblina, 
Qual pérola fina no leito de espumas! 

Nas nuas espáduas, dos astros dormentes 
— Tão frio — não sentes o pranto filtrar? 
E as asas, de prata do gênio das noites 
Em tíbios açoites a trança agitar? 

Ai! vem, que nas nuvens te mata o desejo 
De um férvido beijo gozares em vão!... 
Os astros sem alma se cansam de olhar-te, 
Nem podem amar-te, nem dizem paixão! 

E as auras passavam — e as névoas tremiam 
— E os gênios corriam — no espaço a cantar, 
Mas ela dormia tão pura e divina 
Qual pálida ondina nas águas do mar! 

Imagem formosa das nuvens da Ilíria, 
— Brilhante Valquíria — das brumas do Norte, 
Não ouves ao menos do bardo os clamores, 
Envolto em vapores — mais fria que a morte! 

Oh! vem; vem, minh'alma! teu rosto gelado, 
Teu seio molhado de orvalho brilhante, 
Eu quero aquecê-los no peito incendido, 
— Contar-te ao ouvido paixão delirante!... 

Assim eu clamava tristonho e pendido, 
Ouvindo o gemido da onda na praia, 
Na hora em que fogem as névoas sombrias 
– Nas horas tardias que a noite desmaia. 

E as brisas da aurora ligeiras corriam. 
No leito batiam da fada divina... 
Sumiram-se as brumas do vento à bafagem, 
E a pálida imagem desfez-se em — neblina!


Morreu totalmente maluco, doidinho mesmo...perdeu filho, mulher, não conseguiu se formar em Direito. Para quem tiver disposição de ler mais deste fluminense de Rio Claro, abaixo o poema feito    para curtir a dor pela morte da criança.




Cântico do Calvário
À Memória de Meu Filho
Morto a l l de Dezembro
de 1863.



Eras na vida a pomba predileta 
Que sobre um mar de angústias conduzia 
O ramo da esperança. — Eras a estrela 
Que entre as névoas do inverno cintilava 
Apontando o caminho ao pegureiro. 
Eras a messe de um dourado estio. 
Eras o idílio de um amor sublime. 
Eras a glória, — a inspiração, — a pátria, 
O porvir de teu pai! — Ah! no entanto, 
Pomba, — varou-te a flecha do destino! 
Astro, — engoliu-te o temporal do norte! 
Teto, caíste! — Crença, já não vives! 

Correi, correi, oh! lágrimas saudosas, 
Legado acerbo da ventura extinta, 
Dúbios archotes que a tremer clareiam 
A lousa fria de um sonhar que é morto! 
Correi! Um dia vos verei mais belas 
Que os diamantes de Ofir e de Golgonda 
Fulgurar na coroa de martírios 
Que me circunda a fronte cismadora! 
São mortos para mim da noite os fachos, 
Mas Deus vos faz brilhar, lágrimas santas, 
E à vossa luz caminharei nos ermos! 
Estrelas do sofrer, — gotas de mágoa, 
Brando orvalho do céu! — Sede benditas! 
Oh! filho de minh'alma! Última rosa 
Que neste solo ingrato vicejava! 
Minha esperança amargamente doce! 
Quando as garças vierem do ocidente 
Buscando um novo clima onde pousarem, 
Não mais te embalarei sobre os joelhos, 
Nem de teus olhos no cerúleo brilho 
Acharei um consolo a meus tormentos! 
Não mais invocarei a musa errante 
Nesses retiros onde cada folha 
Era um polido espelho de esmeralda 
Que refletia os fugitivos quadros 
Dos suspirados tempos que se foram! 
Não mais perdido em vaporosas cismas 
Escutarei ao pôr do sol, nas serras, 
Vibrar a trompa sonorosa e leda 
Do caçador que aos lares se recolhe! 

Não mais! A areia tem corrido, e o livro 
De minha infanda história está completo! 
Pouco tenho de anciar! Um passo ainda 
E o fruto de meus dias, negro, podre, 
Do galho eivado rolará por terra! 
Ainda um treno, e o vendaval sem freio 
Ao soprar quebrará a última fibra 
Da lira infausta que nas mãos sustento! 
Tornei-me o eco das tristezas todas 
Que entre os homens achei! O lago escuro 
Onde ao clarão dos fogos da tormenta 
Miram-se as larvas fúnebres do estrago! 
Por toda a parte em que arrastei meu manto 
Deixei um traço fundo de agonias! ... 

Oh! quantas horas não gastei, sentado 
Sobre as costas bravias do Oceano, 
Esperando que a vida se esvaísse 
Como um floco de espuma, ou como o friso 
Que deixa n'água o lenho do barqueiro! 
Quantos momentos de loucura e febre 
Não consumi perdido nos desertos, 
Escutando os rumores das florestas, 
E procurando nessas vozes torvas 
Distinguir o meu cântico de morte! 
Quantas noites de angústias e delírios 
Não velei, entre as sombras espreitando 
A passagem veloz do gênio horrendo 
Que o mundo abate ao galopar infrene 
Do selvagem corcel? ... E tudo embalde! 
A vida parecia ardente e douda 
Agarrar-se a meu ser! ... E tu tão jovem, 
Tão puro ainda, ainda n'alvorada, 
Ave banhada em mares de esperança, 

Rosa em botão, crisálida entre luzes, 
Foste o escolhido na tremenda ceifa! 
Ah! quando a vez primeira em meus cabelos 
Senti bater teu hálito suave; 
Quando em meus braços te cerrei, ouvindo 
Pulsar-te o coração divino ainda; 
Quando fitei teus olhos sossegados, 
Abismos de inocência e de candura, 
E baixo e a medo murmurei: meu filho! 
Meu filho! frase imensa, inexplicável, 
Grata como o chorar de Madalena 
Aos pés do Redentor ... ah! pelas fibras 
Senti rugir o vento incendiado 
Desse amor infinito que eterniza 
O consórcio dos orbes que se enredam 
Dos mistérios do ser na teia augusta! 
Que prende o céu à terra e a terra aos anjos! 
Que se expande em torrentes inefáveis 
Do seio imaculado de Maria! 
Cegou-me tanta luz! Errei, fui homem! 
E de meu erro a punição cruenta 
Na mesma glória que elevou-me aos astros, 
Chorando aos pés da cruz, hoje padeço! 

O som da orquestra, o retumbar dos bronzes, 
A voz mentida de rafeiros bardos, 
Torpe alegria que circunda os berços 
Quando a opulência doura-lhes as bordas, 
Não te saudaram ao sorrir primeiro, 
Clícía mimosa rebentada à sombra! 
Mas ah! se pompas, esplendor faltaram-te, 
Tiveste mais que os príncipes da terra! 
Templos, altares de afeição sem termos! 
Mundos de sentimento e de magia! 
Cantos ditados pelo próprio Deus! 
Oh! quantos reis que a humanidade aviltam, 
E o gênio esmagam dos soberbos tronos, 
Trocariam a púrpura romana 
Por um verso, uma nota, um som apenas 
Dos fecundos poemas que inspiraste! 

Que belos sonhos! Que ilusões benditas! 
Do cantor infeliz lançaste à vida, 
Arco-íris de amor! Luz da aliança, 
Calma e fulgente em meio da tormenta! 
Do exílio escuro a cítara chorosa 
Surgiu de novo e às virações errantes 
Lançou dilúvios de harmonias! — O gozo 
Ao pranto sucedeu. As férreas horas 
Em desejos alados se mudaram. 
Noites fugiam, madrugadas vinham, 
Mas sepultado num prazer profundo 
Não te deixava o berço descuidoso, 
Nem de teu rosto meu olhar tirava, 
Nem de outros sonhos que dos teus vivia! 

Como eras lindo! Nas rosadas faces 
Tinhas ainda o tépido vestígio 
Dos beijos divinais, — nos olhos langues 
Brilhava o brando raio que acendera 
A bênção do Senhor quando o deixaste! 
Sobre o teu corpo a chusma dos anjinhos, 
Filhos do éter e da luz, voavam, 
Riam-se alegres, das caçoilas níveas 
Celeste aroma te vertendo ao corpo! 
E eu dizia comigo: — teu destino 
Será mais belo que o cantar das fadas 
Que dançam no arrebol, — mais triunfante 
Que o sol nascente derribando ao nada 
Muralhas de negrume! ... Irás tão alto 
Como o pássaro-rei do Novo Mundo! 

Ai! doudo sonho! ... Uma estação passou-se, 
E tantas glórias, tão risonhos planos 
Desfizeram-se em pó! O gênio escuro 
Abrasou com seu facho ensangüentado 
Meus soberbos castelos. A desgraça 
Sentou-se em meu solar, e a soberana 
Dos sinistros impérios de além-mundo 
Com seu dedo real selou-te a fronte! 
Inda te vejo pelas noites minhas, 
Em meus dias sem luz vejo-te ainda, 
Creio-te vivo, e morto te pranteio! ... 

Ouço o tanger monótono dos sinos, 
E cada vibração contar parece 
As ilusões que murcham-se contigo! 
Escuto em meio de confusas vozes, 
Cheias de frases pueris, estultas, 
O linho mortuário que retalham 
Para envolver teu corpo! Vejo esparsas 
Saudades e perpétuas, — sinto o aroma 
Do incenso das igrejas, — ouço os cantos 
Dos ministros de Deus que me repetem 
Que não és mais da terra!... E choro embalde. 

Mas não! Tu dormes no infinito seio 
Do Criador dos seres! Tu me falas 
Na voz dos ventos, no chorar das aves, 
Talvez das ondas no respiro flébil! 
Tu me contemplas lá do céu, quem sabe, 
No vulto solitário de uma estrela, 
E são teus raios que meu estro aquecem! 
Pois bem! Mostra-me as voltas do caminho! 
Brilha e fulgura no azulado manto, 
Mas não te arrojes, lágrima da noite, 
Nas ondas nebulosas do ocidente! 
Brilha e fulgura! Quando a morte fria 
Sobre mim sacudir o pó das asas, 
Escada de Jacó serão teus raios 
Por onde asinha subirá minh'alma.

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