terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Jorge Luis Borges



Do tempo que a Editora Globo lançava boas coisas,o Elogio da Sombra - Poemas/Perfis - Um Ensaio Autobiográfico, é de 1977.Infelizmente, a edição não é bilíngue, mas, alas, a tradução é de Carlos Nejar e Alfredo Jacques (dos poemas) e de Maria da Glória Bordini (texto). O texto que escolhi é um tanto longo, mas merece a viagem de cada um.

Fragmentos de um evangelho apócrifo

Desventurado o pobre de espírito, porque debaixo da terra será o que agora é na terra.
Desventurado o que chora, porque já tem o hábito miserável do pranto.
Ditosos os que sabem que o sofrimento não é uma coroa de glória.
Não basta ser o último para ser, alguma vez, o primeiro.
Feliz o que não insiste em ter razão, porque ninguém a tem ou todos a têm.
Feliz o que perdoa aos outros e o que se perdoa a si mesmo.
Bem-aventurados os mansos, porque não condescendem com a discórdia.
Bem-aventurados os que não têm fome de justiça, porque sabem que nossa sorte, adversa ou piedosa, é obra do acaso, o que é inescrutável.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque sua felicidade está no exercício da misericórdia e não na esperança de um prêmio.
Bem-aventurados os de limpo coração, porque vêem a Deus.
Bem-aventurados os que padecem perseguição por causa da justiça, porque lhes importa mais a justiça que seu destino humano.
Ninguém é o sal da terra; ninguém, em algum momento de sua vida, não o é.
Que a luz de uma lâmpada se acenda, embora nenhum homem a veja. Deus a verá.
Não há mandamento que não possa ser infringido,e também os que digo e os que os profetas disseram.
O que matar pela causa da justiça, ou pela causa que ele crê justa, não tem culpa.
Os atos dos homens não merecem nem o fogo nem os céus.
Não odeies a teu inimigo, porque se o fazes, és de algum modo seu escravo. Teu ódio nunca será melhor que tua paz.
Se te ofender tua mão direita, perdoa-a; és teu corpo e és tua alma e é árduo ou impossível fixar a fronteira que os divide...
Não exageres o culto da verdade; não há homem que ao fim de um dia não tenha mentido com razão muitas vezes.
Não jures, porque todo juramento é uma ênfase.
Resiste ao mal, massem espanto e sem ira. A quem te ferir na face direita, podes oferecer-lhe a outra, sempre que não te mova o temor.
Eu não falo nem de vinganças nem de perdões; o esquecimento é a única vingança e o único perdão.
Fazer o bem a teu inimigo pode ser obra de justiça e não é árduo; amá-lo, tarefa de anjos e não de homens.
Fazer o bem a teu inimigo é o melhor modo de comprazer a tua vaidade.
Não acumules ouro na terra, porque o ouro é pai do ócio e este, da tristeza e do tédio.
Pensa que os outros são justos ou o serão, e se não é assim, não é teu o erro.
Deus é mais generoso que os homens e os medirá com outra medida.
Dá o santo aos cães, deita tuas pérolas aos porcos; o que importa é dar.
Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar...
A porta é que escolhe, não o homem.
Não julgues a árvore por seus frutos nem ao homem por suas obras; podem ser piores ou melhores.
Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso dever é edificar como se fora pedra a areia....
Feliz o pobre sem amargura e o rico sem soberba.
Felizes os valentes, os que aceitam com ânimo semelhante a derrota ou as palmas.
Felizes os que guardam na memória palavras de Virgílio ou de Cristo, porque estas darão luz a seus dias.
Felizes os amados e os amantes e os que podem prescindir do amor.
Felizes os felizes.

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